O Menino da Praça XV

O Menino da Praça XV

              Há tempos sem caminhar na histórica Praça XV de Novembro, no centro de Ribeirão Preto, eis que o fiz na última semana, sob o sol ainda menino de uma manhã de domingo. Iniciava-se a primavera. Ao sentar-me em um de seus bancos, olhando ao redor, fui transportado ao passado, em tempos nos quais ali havia vários tabuleiros de xadrez, disponibilizados aos apaixonados por esta atividade. Então, uma situação, que em mim ficou marcada, como ficam as grandes cicatrizes, assomou-me a mente. Estava eu movimentando as peças do tabuleiro, aprendendo ataques e defesas de grandes mestres do xadrez, e simulando movimentos lidos em livros especializados, quando, repentinamente, de mim aproximou-se um menino, em seus nove anos de idade que, atentivamente, acompanhava meu falar em voz alta. Convidei-o para sentar e perguntei-lhe se queria compartilhar aquele jogo de xadrez comigo, que, mesmo não mestre no assunto, era um interessado em fomentar a inteligência lógico-espacial que o mesmo preconizava.

            Timidamente, o menino aceitou. E, em seus primeiros movimentos de peças, imediatamente percebi o prodígio de suas ações. Estava eu, então, diante de um talento no assunto. Jogamos e brincamos a manhã toda. Ao final do dia, era visível o progresso alcançado pelo menino. Ainda que não ganhando a partida, o pequeno sentiu-se entusiasmado, com seus grandes e inocentes olhos azuis, sem frustrações, refletindo as peças do tabuleiro, entusiasmado em continuar a atividade no dia seguinte. Entretanto, recomendei a ele que lesse algumas páginas de um livro que, então, lhe emprestava. Combinado de nos encontrar todo domingo, no mesmo horário, naquele local, assim o fizemos, com o desafio de apenas parar quando o menino, já experiente, fosse capaz de me vencer sete vezes seguidas. O sete causou-lhe surpresa, que logo lhe esclareci: sou apaixonado por este número. Há na literatura científica, em Psicologia, que reza sermos capazes de perceber 7 + - 2 estímulos com acurácia, isto é, até este valor nossa percepção é diretamente linear. Acima do mesmo, nossa percepção se deteriora. Por isso, esta lei é conhecida como o número mágico 7 + ou – 2. É uma lei muito utilizada para controle de aviões em aeroportos.

            Esperava eu assim passar vários meses até que isso ocorresse e tal foi minha surpresa ao constatar que, rapidamente, ele alcançou esta marca triunfal. Para isso, bastaram-lhe sete meses. Ao contrário de muitos, também não me frustrei: fiquei muitíssimo feliz por ele ter alcançado o estabelecido. Neste dia, disse-lhe que, a partir de então, não seria mais comigo que ele deveria jogar, mas, sim com outros. Um dia nos reencontraríamos na longa jornada da vida.

            O tempo passou. Rarearam-se as vezes que retornei à mesma praça. Seus bancos já não me confortavam mais. A violência local passava a me assustar. Aos que o tempo acelera a passagem, a pedra dura e fria dos seus bancos, assim como, os caminhos esburacados que até ela nos levam, bem como, sua falta de segurança, já não são mais convidativos.

            Então, dentre os inúmeros eventos que participei, um, organizado na Universidade de São Paulo, foi um grande torneio de xadrez, aberto a toda região. Não sabia, entretanto, que, durante todo o tempo, a vida que eu vivia, além de ser uma contínua bateria de testes, também se revelava um aleatório tabuleiro: na inauguração, aproximando-me de um tabuleiro, saudosamente movi algumas peças, especialmente a do Rei.

            Uma sombra aproximou-se de mim. Os nove anos iam longe e, já jovem senhor, perguntei a esta pessoa se queria jogar com um professor de inteligência. De pronto o rapaz aceitou o desafio e, não tardou para que eu percebesse sua condescendência em deixar-me ganhar. Perguntei-lhe então quem era. Ao que ele, olhos marejados, respondeu: hoje, sou engenheiro. Ph.D. em Engenharia Aeronáutica. Mas, sobretudo, sou aquele menino que, muitos anos atrás, o senhor ensinou este mágico esporte jogar, esperando, talvez, que minha inteligência espacial se enriquecesse.

            Finda a partida, questionei-lhe o porquê havia me deixado vencer. E ele, bondosamente: “Meu tabuleiro nasceu da grande sabedoria de reconhecer, em todas as peças, reis. O senhor foi este primeiro rei. Impossível esquecê-lo. E mais impossível lhe dar o xeque-mate”. Com um forte abraço agradeceu o que eu lhe fizera tantos anos atrás. Uma lágrima, em cada um de nós, deslizou.

 

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