O milagre de Santa Luzia

O milagre de Santa Luzia

            No lugarejo onde nasci, várias luas cheias atrás, margeando uma das mais antigas avenidas, havia um grande cemitério, ainda não cercado pelos grandes muros de hoje. Até parecia que os vivos, de um lado da rua, e os mortos, do outro lado, conviviam em harmonia, sem que os vivos dessem fôlego ao imaginário. Na mesma rua desse cemitério viviam duas crianças, Ana e Anne. Ana, de elevada habilidade verbal-escrita, independente de que tema fosse. Anne, de elevada habilidade figurativa, ilustrando as narrativas da irmã. A vizinhança já habituada em dizer ao pai de ambas, coveiro do cemitério, que ambas pareciam vela e chama, nunca juntas, nunca separadas. O pai, pessoa querida na região, sempre muito atentivo ao próximo, confortando as pessoas quando necessário, preocupando-se, entretanto, com os jovens que abandonavam o local em busca de perspectivas mais progressistas. A população sob as terras já era maior que a de sobre as terras e, se assim continuasse, logo ali seria um deserto humano.

            Por esta ocasião, nas cercanias do local, havia uma igreja, cujo prelado, Benvenutto, ainda jovem, sofria de doença rara, catalepsia, que, a despeito de clássica, era totalmente desconhecida no local. Ali, caso isso ocorresse, certamente, a crença seria a moda antiga, medievalesca, que o reviver dar-se-ira por milagre divino ou magia negra. Ana e Anne gostavam de levar suas bonecas para brincar de casinha de túmulo em túmulo. Alguns destes, com terra mais fofa, chegando a permitir que as meninas edificassem “cavernas”, algumas vezes usadas para “esconde-esconde”. Como o pai lá trabalhava, entendia, em sua humildade, não haver maldade no que faziam, bem como, que estando em sua companhia, não estariam em perigo.

            Um dia, estando o padre Benvenutto celebrando a missa das dezoito horas, o mesmo sentiu-se mal, desfalecendo com os membros totalmente rijos ao solo. Socorrido, foi, imediatamente, dado como morto. Os religiosos, então, prepararam seu velório e enterro para o dia seguinte. Velado, foi sepultado em lugar que Ana e Anne gostavam de brincar. De fato, horas depois do enterro, as crianças aproximaram-se do túmulo do prelado. Mas, entretidas com as bonecas, não ouviram, de imediato, os ruídos vindos do sepulcro, tampouco os pequenos deslocamentos de terra nas fendas. O pai, sim, atraído pelos gritos das mesmas, correu ao local para ver do que se tratava. O padre Benvenutto, movendo-se no caixão, tentava se libertar. Afastando a terra com as mãos, pai e filhas chegaram a tampa da urna e, erguendo-a, descobriram o prelado vivo.

            A cidade, abalada com a notícia, não se atreveu, por muito tempo, a frequentar-lhe a missa. E, nas semanas seguintes, somente o coveiro e a família ouviram-no orar, agradecendo pela vida. Aos poucos, os fiéis foram voltando. E, para aplacar-lhes o temor de bruxaria, o padre, valendo-se da data festiva em que fora descoberto vivo, atribuiu o milagre a Santa Luzia.

 

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