
Oh, jardineira, por que estás tão triste?
Talvez tenha sido no ano de 1975, se minha fugidia memória ainda me permite relembrar. Estudávamos, então, na disciplina de Psicopatologia, um tema que nos era caro: a histeria. Milton, Toninho e eu, colegas de turma, varando madrugadas discutindo os fatores causais, genéticos e ambientais, predisponentes, agravantes e desencadeantes da mesma, a enquadrávamos nos limites da Psicanálise e, no aprofundar das discussões, a redescobríamos em terras behavioristas. Ao final, entretanto, sempre chegando à conclusão que nenhuma teoria explicava, na totalidade, a estrutura, o desenvolvimento e a dinâmica de qualquer quadro clínico. Tempos bons aqueles: teorizar sem qualquer compromisso com a realidade.
Eis que, chegado o início de fevereiro, envolvidos os três em estágio lá pras bandas da Rua Pará, pegando ônibus ou trem, chegávamos animados ao local e tínhamos que encarar pacientes reais e suas histórias clínicas nada ficcionais. Difícil se deparar um paciente que se enquadrava perfeitamente aos modelos relatados na Academia. Ingênuos, ainda tardaria para que descobríssemos a raridade de encontrar um caso perfeito a um quadro clínico já conhecido. Só o passar dos anos nos ensinaria que cada caso era um caso e que as características nada mais eram que aproximações a outros tantos relatos vistos. Entretanto, vieses de formação, experimentalistas que éramos, buscávamos estatísticas em tudo.
Certo dia, nos acercando da entrada do local, nos deparamos com grande movimentação causada por uma mulher que, aos gritos e empurrões, se recusava a adentrar no recinto, afirmando, aos brados, que não era louca, que não queria mãos em cima dela e que a família é que tinha que ser internada. Irônico era que, sendo terça-feira de Carnaval, vinha de um bar da vizinhança, na voz de Orlando Silva, uma conhecida marchinha, “Oh, jardineira por que estás tão triste/ Mas o que foi que te aconteceu/ Foi a Camélia que caiu do galho/ Deu dois suspiros e depois morreu”.
Meu amigo Milton, percebendo a ironia do contexto, rapidamente se aproximou da moça, atirou ao chão seu avental branco e, animado que era, reverenciando a moça, continuou a cantar, “Vem jardineira/ Vem meu amor/ Não fique triste/ Que este mundo é todo teu/ Tu és muito mais bonita/ Que a camélia que morreu”. A receita foi infalível: a moça, sorridente com o cortejo daquele jovem, aceitou o convite para dançar e, sem perceber, transpôs os limites da instituição, despedindo-se, feliz, dos parentes.
Lembro-me, na ocasião, de ter presenciado o alívio destes. Mas um alívio que, a despeito da alienação da marchinha, também lhes roubara lágrimas dos olhos. A empatia entre aquele quase psicólogo e a recém-paciente, imediata que fora, garantiu, à mesma, o necessário tratamento. E os resultados foram tão imediatos que surpreenderam a nós, amigos, e aos clínicos de então: a paciente recebera alta antes que o Carnaval seguinte chegasse. Milton, mais experiente, então, comemorou num clube da cidade. Fantasiado de Pierrô, não tardou que logo dele se aproximasse uma bela colombina. Desde, então, a jardineira nunca mais ficou triste.