Os onze magníficos

Os onze magníficos

            Quem desce as escadas rolantes daquele grande hipermercado, imediatamente encanta-se com a antiga fotografia retratando onze meninos que, por volta da década de 50, talvez entre nove e quinze anos de idade, exerciam a nobre função de jornaleiros mirins. Tão intensa foi a fascinação que ela me causou que, todas as vezes em que a vi, sentia-me hipnotizado pela mesma. E a pergunta que passou a se repetir em minhas imaginações foi indagar qual teria sido o destino de cada um deles, tanto tempo depois. Certo dia, num desses momentos de contemplação, uma idosa madre, cabelos embranquecidos pelo tempo, olhos azuis céu, observando-me com atenção, descobriu-me emocionado e, aproximando-se de mim, chamou-me para um canto e, com voz branda e acolhedora, esta história contou.

            Por muitos anos, diretora de um centro educacional benemérito, não foram poucas as vezes em que mães, economicamente desfavorecidas, e outras, que necessitavam manter o anonimato, ali compareceram, levando-nos, ou deixando-os, seus filhos, para que os educássemos e preparássemos para a vida. Estes onze meninos que ai estão foram alguns de nossos mais brilhantes alunos, os quais, com a ajuda do proprietário do jornal local, aprenderam o ofício de aprendiz de jornaleiro, entregando, pontualmente, os jornais em todos os cantos da cidade. Tão espertos e lépidos eram que, até os fatos que presenciavam, no decorrer do dia, eram levados às paginas pelos redatores de então. Eram “quase” repórteres e o diretor do jornal, e sua equipe, afeiçoados a eles, além de ensinar-lhes como se fazia um jornal, desde a composição da notícia até sua entrega final, mais que uma profissão, ensinava-lhes dignidade”.

Respirando profundamente, cansada pela avançada idade, a senhora acomodou-se num dos bancos que por ali se achavam e continuou a narrar sua história, a qual, maravilhando-me, era por bebida, palavra por palavra. “Por serem onze, foi fácil constituírem um time de futebol, ‘Os magníficos’, que a população teve satisfação em apetrechar com meias, tênis, bermudas, camisetas e bolas, bem como, em acompanhar suas partidas dominicais após a missa. E como raramente eram derrotados, às segundas-feiras, eles próprios ocupavam a manchete esportiva no jornal local. De formação filosófica e religiosa que eu era, ao batizá-los, nomeei-os com os nomes de grandes filósofos e matemáticos da humanidade. Assim, tínhamos” – e neste momento, com o indicador em riste, e lágrimas saudosas nos olhos, os foi apontando, um a um, e dizendo-me seus nomes – “Tales, Pitágoras, Sócrates, Demétrio, Hipócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Arquimedes, Cícero e Sêneca”.

            Entretanto, enquanto a ouvia, notei que, ao pronunciar “Agostinho”, sua voz foi entrecortada por emoção mais forte, ao que lhe questionei o porquê. Transportada ao passado, cabisbaixa, abriu-me seu coração como quem, falando sobre aquilo, se aliviasse de um grande peso. “O pequenino Agostinho... Tão meiguinho... Ele era o mais humilde de todos, o mais sofrido e, também, o mais discriminado pela sociedade por causa de sua cor. A despeito disso, era o mais inteligente, o mais hábil, o mais alegre, o mais sábio, o mais caridoso de todos, vindo a se tornar, anos depois, e auxiliado pelos demais, um dos maiores teólogos que este país já teve. Tal como ele, também Hipócrates, outro deles, seguiu-lhe o exemplo e os passos, vindo a ser um dos maiores cirurgiões cardíacos da nossa nação”.

            Vendo-a tão emocionada, e cansada, tomei-lhe, respeitosamente, as frágeis mãos nas minhas e perguntei-lhe se queria continuar ou parar. Ela sorriu humildemente, agradecida por minha preocupação, reafirmando seu desejo de continuar a narração. “Dos demais, todos foram magníficos na profissão que abraçaram. Um deles se tornou engenheiro, a ponto de não haver qualquer projeto de Estado sem sua assinatura. Outro se tornou matemático, resolvendo teoremas insolúveis até então. Outro se tornou escritor, traduzido em muitas línguas. Tivemos, também, três professores, um dentista e um jornalista de profissão, apaixonados pelo que faziam. Este último, sempre com reportagens premiadas no mundo. Mas há algo que não sai de minha memória. Os encontros periódicos que faziam, no dia do jornaleiro, para compartilharem seus destinos, e que resultaram em dois pactos. Um, de se encontrarem, cinqüenta anos depois, para uma missa de ação de graças, na qual deveriam levar toda a família. Neste dia, eles mesmos fariam questão de distribuir os jornais, como forma de relembrar a profissão, revertendo a renda para o centro educacional no qual eles se educaram. Outro, que todas as vezes em que um estivesse em dificuldade, os demais se reuniriam, liderados pelo mais velho, para ajudarem a saná-la. Isso ocorreu em duas ocasiões: uma, quando Hipócrates, estudante de Medicina, teve dificuldades em completar os estudos e outra, quando Agostinho, necessitando mover-se para Roma, precisou de recursos suplementares. Como forma de agradecimento, Agostinho batizou todos os primogênitos de cada um deles, dentre os quais dois gêmeos e um trigêmeos. Ao todo, ele batizou sete meninos e sete meninas dos magníficos. Do mesmo modo ocorreu com Hipócrates que, formado, rejuvenesceu, com suas hábeis mãos, os corações de dois dos mais veteranos atletas dos magníficos”.

            Não faz muito tempo esse último encontro aconteceu. Pontualmente, todos chegaram, à exceção de um: Agostinho. Nomeado cardeal pelo papa, ocupava grandes responsabilidades na Santa Sé. Prevista para as dezoito horas daquele trinta de setembro, foi exatamente nesse horário que, de forma apreensiva, os sinos daquela grande catedral começaram a repicar estrondosamente. Então todos o viram, à distância, adentrando a escadaria da igreja, em nobre veste cardinalícia roxa e preta. Missa iniciada, estavam ali, conforme prometido, reunidos e sorridentes, juntamente com seus familiares, os onze magníficos. Finalizada a cerimônia, e os abraços efusivos, os sinos voltaram a repicar, preocupando a todos. Mas, agora, as badaladas, embora fortes, eram de paz, agradáveis de se ouvirem. Tirada a foto, não tardou que todos notassem, novamente, a ausência de Agostinho. Ele deveria estar correndo, como sempre. No dia seguinte, os amigos, felizes, se encontraram nas escadarias da igreja para adquirirem, juntos, os jornais que noticiariam, na primeira página, o tão esperado encontro. Porém, qual não foi a angústia de todos ao verem estampada a seguinte manchete, ‘Filho honroso de nossa terra, Cardeal Agostinho faleceu à 18h de ontem (hora de Brasília) em Roma’. Chocados, e sem palavras, os dez amigos retornaram as suas casas. E qual não foi a surpresa ao receberem, das mãos dos familiares, um telegrama que acabara de chegar, dizendo: ‘Irmãos, ninguém é obrigado a prometer. Mas, se prometeu, deve cumprir. Foi uma dádiva ter compartilhado com vocês parte tão feliz da minha vida’. Só então, em assombroso choque, compreenderam a miraculosa presença de Agostinho no encontro dos amigos quando, na Santa Sé, era ele velado pelos demais clérigos. Talvez, por isso, esta foto, miraculosamente, lhe reclamou a atenção. Talvez, por isso, miraculosamente, nos encontramos. Porque há histórias que não podem ser caladas... porque há histórias que cabe a você contar”.

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