Sarney, Euclides da Cunha e Ruy Barbosa: quando sentir vergonha de si

Sarney, Euclides da Cunha e Ruy Barbosa: quando sentir vergonha de si

            Tempos atrás, em sessão vespertina do Senado Federal, pareceu-me que diversas personalidades presentes se entendiam elenco de uma peça de Shakespeare. Entretanto, muito aquém daqueles que as peças deste representaram, coube aos senadores José Sarney e Eduardo Suplicy os papéis principais de uma comédia com entrelinhas de tragédia. Sarney, membro da Academia Brasileira de Letras, erudito político brasileiro, homenageava o escritor Euclides da Cunha, autor que, às margens do Rio Pardo, há 100 anos, redigia o relato jornalístico-literário e científico sobre a Revolta de Canudos, “Os sertões”, que cruzou fronteiras dos quatro cantos do mundo. Entretanto, eis que, no ato seguinte, levanta-se o nobre senador Suplicy que, premeditadamente, munido de um cartão vermelho, num gesto apoplético, ergueu tal cartão e aplicou-o, tal qual juiz futebolístico, a Sarney. Tal cartão, tanto por conta da cor vermelha, que já representa, por si, um alerta máximo, quanto por conta do repúdio que grande parcela da população brasileira manifestou sentir pelas denúncias divulgadas contra os atos secretos, praticados pelo presidente do Senado, denunciados pela grande imprensa, representou a manifestação pública de expulsar José Sarney do campo político do senado.
           
        Todavia, o gesto teatral de Suplicy talvez tivesse ecoado com maior eficácia se o mesmo tivesse usado a mesma arma utilizada, comumente por Sarney, a saber, a força semântica da palavra, com a qual este, tão elegantemente, se expressa em suas falas e escritos. Estivesse eu integrando tal tragicomédia, é certo que não interpretaria meu papel como um Anthony Hopkins, tido, por muitos, como o mais shakespeariano dos atores ingleses, mas verbalizaria o discurso que um dia Ruy Barbosa verbalizou, indignado, diante da vergonha que chegou a sentir do Brasil e de ser brasileiro, a saber, “Sinto vergonha de mim”. Ruy Barbosa, um dos mais importantes personagens da História do Brasil, dotado não apenas de inteligência privilegiada, mas, também, de grande capacidade de trabalho, atuou em várias áreas do direito, bem como, do jornalismo, da diplomacia e da política. Deputado, senador, ministro e candidato à Presidência da República, em duas ocasiões, realizou campanhas memoráveis, adotando, sempre, um comportamento baseado em sólidos princípios éticos e em grande independência política

            Orador imbatível e estudioso da língua portuguesa, nomeado presidente da Academia Brasileira de Letras, em substituição ao grande Machado de Assis, assim se pronunciou em seu texto:

Sinto vergonha de mim por ter sido educador de parte desse povo, por ter batalhado sempre pela justiça, por compactuar com a honestidade, por primar pela verdade e por ver este povo, já chamado varonil, enveredar pelo caminho da desonra. Sinto vergonha de mim por ter feito parte de uma era que lutou pela democracia, pela liberdade de ser, e ter que entregar aos meus filhos, simples e abominavelmente, a derrota das virtudes pelos vícios, a ausência da sensatez no julgamento da verdade, a negligência com a família, célula-mater da sociedade, a demasiada preocupação com o "eu" feliz a qualquer custo, buscando a tal "felicidade" em caminhos eivados de desrespeito para com o seu próximo. Tenho vergonha de mim pela passividade em ouvir, sem despejar meu verbo, a tantas desculpas ditadas pelo orgulho e vaidade, a tanta falta de humildade para reconhecer um erro cometido, a tantos "floreios" para justificar atos criminosos, a tanta relutância em esquecer a antiga posição de sempre "contestar", voltar atrás e mudar o futuro. Tenho vergonha de mim pois faço parte de um povo que não reconheço, enveredando por caminhos que não quero percorrer...Tenho vergonha da minha impotência, da minha falta de garra, das minhas desilusões e do meu cansaço. Não tenho para onde ir pois amo este meu chão, vibro ao ouvir meu Hino e jamais usei a minha Bandeira para enxugar o meu suor ou enrolar meu corpo na pecaminosa manifestação de nacionalidade. Ao lado da vergonha de mim, tenho tanta pena de ti, povo brasileiro! De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".

            Talvez Ruy Barbosa, se vivo fosse, e ainda presidindo a Academia Brasileira de Letras, teria dito ao nobre senador José Sarney: “Sinto-me envergonhado, até que provem o contrário, de presidir esta casa de Letras que tem, em seu seio, um representante indigno de seu povo, de sua língua e de seu poder público”. Acredito eu que, se Suplicy assim o tivesse feito, toda aquela casa, e, principalmente, Sarney, se silenciariam em face da força das palavras de Ruy Barbosa, as quais, passados 86 anos de sua morte, ainda ecoam, e fazem sentir, o brado de sua indignação quando traído o povo brasileiro.

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