
A segunda chance
(Esta ficção é dedicada ao mais brasileiro dos brasileiros, Dr. Brasil Salomão)
Em meados de abril, num dado ano de minha vida, estando eu na Universidade de Coimbra, aquentado no aconchego da esplendorosa Biblioteca Joanina, vasculhava, em obras jurídicas clássicas, indicações acerca da relação entre inteligência e criminalidade. Interessava-me, então, encontrar evidências antigas que já houvessem especulado sobre a alta correlação entre os escores de inteligência avaliados pelos testes de QI e variados indicadores de criminalidade, tanto em nível individual quanto em nível agregado. Em outras palavras, relacionados a pessoas que, tendo menor inteligência, mais prováveis pareciam ser de envolverem-se em comportamentos criminosos diversos.
Nesses olhares, chamou-me a atenção um volume já desgastado pelo tempo, lombada ruída, páginas amareladas, aparentemente raras vezes consultadas, intitulado Julgamentos Imortais. Ansioso tomei-o nas mãos, olhos sedentos pelo que o tempo ali preservara. Folheando-o, eis que me deparei com um caso, destacado por puído marcador de páginas, que aqui vou relatar. O caso acontecera em uma aldeia perdida no tempo, na região de Trás-os-Montes, por ocasião do assassinato de um casal representativo na localidade. O assassino? Um aldeão miserável, castigado pela nevasca e desemprego, que, ao ali adentrar em busca de alimento, despertou, incidentalmente, o casal que, assustado, tentou se defender. Porém, em choque e inexperiente, descontrolou-se, emocionalmente, o aldeão, mal se dando conta que apertara o gatilho de sua velha espingarda de caça, ferindo de morte o casal.
O estopim de pólvora, cortando o silêncio da noite, colocou a aldeia em polvorosa, com homens saindo a cavalo de todos os cantos. Casal querido por muitos, benfeitores há séculos dos desfavorecidos, tal fora a comoção por sua morte que o pobre diabo, enjaulado, quase fora linchado pela população. Neste momento, sobreveio a intervenção do pároco local. “Apesar de tão hediondo crime, é preciso assegurar-lhe o direito de defesa: é um filho de Deus.”
Comoção finalizada, os legisladores da cidade, em reunião acalorada, e entendendo que o jovem aldeão assassino deveria ser de pronto condenado, resolveram, com aquiescência do juiz local, nomear como advogado de defesa um dito bacharel em Direito que, bêbado de dar pena, vagava de bar em bar, de bueiro em bueiro, de sarjeta em sarjeta naquele local, como se fugindo de seus próprios sentimentos e do mundo. Em alguns momentos, a igreja buscando como refúgio e acalento. Acerca deste corria, de boca em boca, ter sido, outrora, um notável criminalista, influente e afluente nos arredores de Coimbra. Comentava-se, também, em alguns arredores, que ele, inteligente que era, jamais havia perdido uma causa. Entretanto, poucos questionaram o porquê de, tendo sido tão sábio e rico, viver o doutor em tão má situação. Ao que os mais atrevidos aludiam tratar-se da amargura que o assassinato de sua esposa, provocado pela parte perdedora numa demanda por ele ganha, lhe causara: morta por se fazer escudo do marido na hora fatídica. Culpado ele sempre se sentiu.
Eis chegado o grande dia: aldeia parada, tribunal abarrotado, todos indagando a real necessidade de um advogado de defesa. E tão imersos estavam em trocar desejos de condenação imediata que mal perceberam o doutor entrando no recinto: banho tomado, barba aparada, terno e gravata e a velha constituição portuguesa na mão. Silêncio total. A acusação toma assento e desfere os primeiros golpes verbais. Clamava a condenação do réu, aplaudida por todos. Juíz e jurados, aparentemente, endossando as palavras acusatórias. Dificuldade na contenção dos exaltados ânimos.
Então, a defesa: voz firme, ainda que cansada. Nomeando juiz e jurados pelo primeiro nome, citando-lhes peculiaridades conhecidas, tratando-os como velhos conhecidos. Repetiu o ocorrido, condenando, de imediato, o miserável assassino. Entretanto, quando todos já anteviam a condenação, o doutor mencionou sua costumeira passagem pela igreja, como sempre fizera antes e após cada julgamento em que participou na vida. Na escadaria da igreja, surgindo do nada, eis que uma miserável senhora, ajoelhando-se e beijando-lhe os pés, implorou pela inocência do filho que, se fez o que havia feito, fora para trazer-lhe o sustento em seu leito convalescente. O choque em todos foi instantâneo. Uma mãe? Idosa e miserável? Aguardando, adoentada, a comida do furto para sobreviver? “Meritíssimo Senhor Juiz e senhores jurados... se condenarmos este miserável, quatro estaremos matando: os dois aldeões, já perdidos, esta criatura e sua pobre mãe. Dêem-lhes uma segunda chance”.
O burburinho foi geral. Jurados, abalados interiormente, se retiraram para deliberar. Grande delonga era aguardada. Porém, a rapidez com que voltaram assustou a comunidade. Indagados pelo juiz, um dos jurados, representando os demais, anunciou a absolvição, por unanimidade, mediada por prestação de serviços a comunidade. A importância materna, mais antiga que rascunho de bíblia, embasava o veredicto.
Saindo para a rua, à igreja retornando, como de costume, para encerrar a ocasião, o advogado é interrompido pelo Prefeito e o Juiz. Comovidos, indagavam como poderiam ajudar a subsistência da pobre mãe enquanto perduravam as tramitações burocráticas da época. Onde encontrar a pobre e adoentada senhora? Ao que o doutor, lúcido, retrucou, “Nem sei se este pobre desgraçado tem mãe”. E assim dizendo, ao altar subiu. Seus olhos esquadrinhando o ambiente em busca da velha senhora. A esposa assassinada, também numa segunda chance, o reaproximava de Jesus.