Sem reprise para sonhar

Sem reprise para sonhar

              Duas semanas atrás, desafortunado por um incidente doméstico na mão esquerda, vi-me compelido a buscar cuidados médicos emergenciais num hospital de minha cidade. RX efetuado, medicação prescrita e consulta finalizada, eis que reencontro um fraterno amigo: Oswaldo. O abraço dos tempos de república ainda presente no agora afamado neurologista. Sentando-se no saguão de entrada, contava-me que, naquele dia, sentindo vontade de visitar aquele que fora seu ambiente de trabalho por toda a vida, ali chegara mais cedo e pusera-se a relembrar os corridos plantões de quando a vida ainda lhe era turva. Mas seus olhos, marejados, tentavam, assim que me viram, disfarçar doloridas lágrimas que teimavam a deslizar-lhe pela face.

               Muito tempo havia se passado desde nossa formatura. O que eu sabia de sua vida? Poucas coisas. A principal delas? Que gostava de recitar Cruz e Sousa (Quando no enleio de receber umas notícias tuas, Vou-me ao correio, Que é lá no fim da mais cruel das ruas, Vendo tão fartas, D’uma fartura que ninguém colige, As mãos dos outros, de jornais e cartas E as minhas, nuas – isso dói, me aflige…  E em tom de mofa, Julgo que tudo me escarnece, apoda, Ri, me apostrofa,  Pois fico só e cabisbaixo, inerme, A noite andar-me na cabeça, em roda, Mais humilhado que um mendigo, um verme…), quando, então, eu o contra-atacava com Castro Alves (E existe um povo que a bandeira empresta, P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...E deixa-a transformar-se nessa festa/Em manto impuro de bacante fria!...). O poeta dos escravos contra-atacando o cisne negro. Para além disso, tínhamos, também, em comum, o entoar de uma boa moda de viola.

               Porém, indagado por mim de sua tristeza, logo viu que eu percebera não serem, aquelas, lágrimas que deslizavam, apenas, pelas saudosas poesias. E, vendo-o constrangido por tal, antes que ele verbalizasse o que quer que fosse, eu logo o acudi, “Sarah... ?”. Ao que ele, prontamente, consentiu com um menear de cabeça.

               Quem foi Sarah? Foi, com certeza, seu primeiro amor. A menina sorridente com quem compartilhou as descobertas do primário e do ginásio. A menina corajosa que, desde jogar-lhe um galho para que não se afogasse no rio, cotidianamente em tudo o animava. Sarah... suas mãos e seus pés... seus braços e caminhadas. Lembrava-me de os ver, sempre juntos, em tudo que faziam. E lembrar-me-iria mais se sua voz não voltasse a soar, trazendo-me a realidade.

               Pesaroso e sussurrante, passou a contar-me, então, o que eu não sabia. Insone em sua casa, sentira, naquele dia, estranha necessidade de ir mais cedo ao hospital. Necessidade de urgência tão intensa que mais parecia apelo que lembrança. Habituado às sincronicidades da vida, não se surpreendeu quando, mal adentrando ao hospital, ali reencontrou Sarah. Envelhecida, cabelos acobreados, trazia nos olhos, o desespero. Reconhecendo-o, não tardou agarrar-lhe as mãos, suplicando-lhe que não a deixasse sofrer. Acometida, há tempos, de um tumor inoperável, sabia-se prestes a deixar a vida.

               As horas... a experiência que aumenta com o passar delas... A experiência que aumenta a cada dia... A despeito do uso de todos os recursos, ele, tendo-a em seus braços, a perdia. Mãos de Deus para a cura dos homens, mas, infelizmente, não mãos a quem couberam salvar-lhe a vida. Ia-se embora a alegre menina. Perdidos estavam aqueles grandes olhos. “Ganhara-a de mim, a Eternidade”, disse-me ele, “Ah, amigo... que bom revê-lo nessa hora... precisava tanto de seu abraço”.

               Nesse momento, tendo chegado o horário de seu plantão, o alto-falante, alheio a sua dor, reclamava-o na sala de cirurgia. Era, certamente, mais uma vida precisando de sua ajuda. Respirando fundo, Oswaldo endireitou o corpo e despediu-se. Precisava ir. A vida o chamava. Então foi a vez de meus olhos toldarem-se de lágrimas. Àquele rapaz que conheci, tantos anos antes, amigo de prosa, viola e poesia, não coubera sequer um mínimo de tempo para se lamentar. A vida...sim, assim é a vida... sem reprise para sonhar... a vida como ela é.

 

 

 

 

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