Urubu-rei

Urubu-rei

          Doutor Bergstein era um homem que se dizia privilegiado, e isto por várias razões. Primeiro, porque a vida havia lhe proporcionado muitas oportunidades, dentre elas, ter sido, embora estrangeiro, muito bem recebido naquelas terras, na qual pôde se formar em Medicina e cuidar de muitas crianças no rincão que escolhera para morar. Segundo, por haver angariado grande riqueza material que, mais do que necessitava para viver, servia-lhe para auxiliar o próximo. Terceiro, pela família digna que constituíra quando prefeito de Aparecida do Taboado, que muito lhe ajudara na reflexão das políticas públicas necessárias aquele lugar. Considerado por todos ali, não havia um cidadão, sequer, que não lhe tirasse o chapéu por tudo o que fizera, bem como, pelo apoio e palavras amigas que dele haviam recebido. Mas, comum à natureza humana, não tardou que, em alguns momentos de sua vida, convivesse com outros que lhe invejavam a sabedoria, a riqueza e popularidade local. Alguns chegando, mesmo, a detestá-lo por espelhar excesso de honestidade.

            Em suas vastas propriedades, sempre fizera questão de preservar a flora e a fauna nativas, com seus animais silvestres e demais belezas naturais, surpreendendo a todos por alimentar, com suas próprias mãos, um urubu-rei, que por ali aparecera faminto e ferido, ninguém sabe de onde, com o qual, após dele cuidar como um de seus pequeninos pacientes, parecia conversar e trocar idéias numa interação quase humana. Invariavelmente, o urubu-rei, aproximando-se da casa-grande três vezes ao dia, tinha por hábito bufar como que saudando-o e avisando-o que estava com fome. Ocasiões em que familiares, e íntimos do médico, percebendo-o a alimentar a ave, também viam a atenção que aquele olhar de rapina dedicava ao luzir da aliança do tratador, mantida em seu anelar direito a despeito dos vinte anos de sua viuvez. Tanto carinho e atenção mútuos só poderiam resultar num fato: tornaram-se companheiros inseparáveis.

            Eis que, num final de tarde, o urubu-rei, aproximando-se da casa-grande, por mais que bufasse, não via seu amigo aparecer, fato este que se repetiu no dia seguinte. Os peões, então, relataram ao delegado da cidade que, na noite do desaparecimento do Dr. Bergstein, ouviram vozes agitadas e barulhos estranhos vindos da casa-grande, seguidos de um “Não, não e não!!!” veemente e contínuo do médico e, ao amanhecer, constataram que objetos de estimação, ali presentes, haviam, também, desaparecido. A consternação foi geral, principalmente porque não concebiam quem, em sã consciência, poderia ser inimigo de tão bondosa personalidade, amigo até de urubus. O resultado foi que todos da cidade, afetivamente, envolveram-se nas buscas pelo desaparecido, a ponto de fecharem o comércio e, até mesmo, lotarem a igreja, orando por sua saúde e localização.

            Alguns até perceberam que o urubu-rei, embora de natureza antissocial, parecia liderar outros urubus no rodear em círculos sobre as terras locais, esquadrinhando, a olhos vistos, os caminhos e brejos nos quais seu amigo poderia estar. Observadores mais atentos, então, notaram que os urubus não haviam localizado, naquela vasta área, nada em putrefação ou em agonia. Porém, viram quando o urubu-rei, no terceiro dia, ao se aproximar da casa-grande em busca de alimento, bufou violentamente em direção ao prefeito da cidade, envergando contra este suas asas imensas. Mirava, secamente, a aliança do amigo a cintilar no anelar esquerdo daquele estranho. O padre, amigo de viola e confessor do Dr. Bergstein, reconheceu imediatamente aquele símbolo, por ele sacramentado por ocasião do casamento do fazendeiro, não demorando a solucionar o sumiço.

            Esclarecendo à população local suas observações, e a quem elas levavam, o prelado induziu o povo a exigir do prefeito esclarecimentos sobre o uso daquela aliança que não lhe pertencia, ao que a autoridade, acuada e arrependida, confessou ter enterrado vivo o Dr. Bergstein, motivado pelo receio deste denunciar sua tentativa de suborno, que serviria ao governante para encobrir os desvios de verbas, e superfaturamento, por ele praticados na compra de terras para construção de moradias populares no município, atitude, esta, repudiada pelo médico, amigo do refrão “O dinheiro do povo deve ir para o povo”.

            O urubu-rei, parecendo compreender o que ocorria, imediatamente moveu-se para o alto da montanha, acompanhado pelos demais urubus, uma multidão de pessoas os seguindo. Em lá chegando, líder que era dos demais, pairou no ar, agudez visual atiçada, voando em círculos e esperando que a multidão revolvesse aquela terra então remexida. Cavucado o local, viram as extremidades de um caixão surgir à tona. Abrindo-o, encontraram o fazendeiro agonizando, ao que correram em socorro.

            Semanas depois, o Dr. Bergstein, aos pés de sua santa de devoção, a esta agradeceu sua recuperação e disse, brincando, ao pároco amigo, “Suas orações, meu amigo, são tão abençoadas que até os urubus me protegem. Obrigado por tudo. Vamos alimentar nosso amigo? Ele está bufando lá fora”.

 

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