Zé Coragem: lobo e irmão

Zé Coragem: lobo e irmão

            Em um julho frio, e de longos dias, cansado de trabalhar, resolvi visitar um amigo em Aparecida do Taboado. Estradão deserto, acerquei-me, altas horas da madrugada, de um grupo de caminhoneiros reunidos em torno de uma fogueira, proseando, animados, ao sabor do café a moda daquelas terras. Pedindo licença, perguntei a quantos quilômetros poderia eu, homem de livros, encontrar uma boa pousada para apear e descansar. Ao que, um dos caminhoneiros, ofertando-me uma caneca da fumegante bebida, convidou-me a compartilhar com eles do calor daqueles gravetos estalantes e da carne de sol que assavam. Apresentaram-se, todos, quase de uma vez, ao que um deles, ao centro da roda, retomou a história que contava.

            Muitos anos atrás, acostumado com aquelas estradas de terra batida, um caminhoneiro, por alcunha Zé Coragem, temente somente a Deus, embrenhara-se norte adentro com o único fito de entregar em seu destino as variadas cargas encomendadas junto as ricas terras paulistanas. De munição somente uma espingarda prateada e um revólver de cano longo, forjado a ouro.

            Dito isso, uma pausa fez para melhor sorver da respiração presa e olhos arregalados dos demais. E satisfeito, tinindo a colher na chaleira, continuou saudoso, quase sem respirar.

            Índios, quadrilhas, saqueadores... nada o amedrontava. E se avistava os bandoleiros do seu velho Scania, metia a mão na buzina que soava como um berrante cortando o ar. Os ressabiados, conhecedores de sua fama, respeitavam-no e deixavam-no passar. Outros, desinformados, arriscavam-se na pistola. E o que recebiam eram balas para o ar, num sinal de aviso do que faria caso o impedissem de passar. Sua fama aumentava de boca em boca. E formando foi uma legião de admiradores.

            A essa fama logo juntaram-se outras, em nada menores, nem menos honrosas que a primeira. Uma delas, espalhada rapidamente, foi a do Dia do Sacrifício. Um grupo de bandoleiros, que a todos atormentavam por aquelas bandas, sequestrara um caminhoneiro muito devoto de N. Sra. Aparecida e, pedageando todas as rotas ao norte, obrigava cada veículo que por ali passasse a lhes deixar parte do que levavam como resgate de soltura daquela vítima. Zé Coragem, que andava por aqueles ares, aperreado com a madrasta sorte do amigo, resolveu negociar com os valentões. Foi sozinho, não por audácia, tampouco arrogância, mas pelo simples fato de poucos que já haviam procedido tal intento não terem saído com vida de lá.

            Desarmado, munindo-se, apenas, de uma já tosca imagem da santa de devoção, para lá se deslocou. A santa, presente de milagroso padre da região de Tambaú, com ele seguia por toda uma vida, sempre recebendo seu ritual de persignação quando chegava ou saía da boleia do caminhão. Santa na mão, com ela desceu ao chegar no lugar. Santa na mão, com ela informou sua alcunha de nomeação. Viera ter ali para com ela pagar o resgate daquele irmão. Ao ouvirem seu nome, muitos se amedrontaram. Conheciam-lhe a fama do corpo fechado e das armas certeiras que, para ali estar, ele abrira mão. Sem muita conversa, estendeu-lhes a santa sem nenhum tremor nas mãos, assegurando-lhes que, em aceitando, dali por diante nenhum roubo seria necessário para garantir-lhes o ganha-pão. E assim a troca foi aceita, sem nenhuma confabulação.

            Partindo Zé Coragem, acompanhado daquele irmão, cada um dos bandoleiros pegou seu rumo numa direção. Prova disso era ele estar ali, fazendo aquela narração.

            Um soluço incontido rompeu o silêncio que sobre todos descera como uma cerração. Indagado, quase em uníssono, pelo motivo da minha emoção, mais pasmados ficaram ao ouvirem que entre eu e Zé Coragem havia uma ligação.

            Aquele homem destemido, um dia, já fora homem de livros como eu. Nos tempos em que era grande plantador de cebola na cidade de São José do Rio Pardo. Tempos em que o Coragem era conhecido, apenas, como de minha mãe o irmão.

 

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