Uma questão de adaptação...

Uma questão de adaptação...

Localizado no Vale do Alto do Ribeira, sul do estado de São Paulo, existe uma caverna em que não há fração de luz em seu interior. Dentro dela, alimentado pelas chuvas e rios subterrâneos, uma lagoa foi formada.

Ao longo de centenas, talvez, milhares de anos cresceu isolado uma espécie de bagre do gênero Heptapterinae. Esse isolamento conferiu uma condição evolutiva particular a esta espécie, além de adaptações fisiológicas e anatômicas, a cegueira e a falta de pigmentação foram as alterações mais significativas, ambas em decorrência da ausência de luz.

Conhecidos como Bagres Cegos de Iporanga, sua adaptação tornou-se perfeita ao longo dos tempos, sendo sua percepção mais desenvolvida para as condições ambientais presentes nesse ecossistema. Tudo aquilo que a visão conferiu um dia a sua espécie agora é percebida pela sua linha lateral e olfato.

Não muito distante dali há um rio caudaloso com inúmeras espécies de peixes, dentre eles um parente distante do Bagre Cego de Iporanga. A luz refletida sobre o Bagre do Rio leva a um exemplar da espécie com cores fortes, reluzentes, dotado de visão bem desenvolvida para a captura de alimentos, enxergar suas presas e obstáculos.

Setembro abre a estação primaveril acompanhada com chuvas intensas.

Na segunda quinzena de novembro inicia no Alto do Vale do Ribeira chuvas torrenciais alagando tudo e transbordando o rio onde reside o bagre. As águas elevam-se em volume e força encontrando a abertura da caverna, onde vive o Bagre Cego de Iporanga. A correnteza era tão forte que o Bagre do Rio foi levado sem resistência para dentro da caverna. Horas mais tarde a tempestade parou, o rio recuou suas águas, isolando novamente aquele ecossistema particular, porém, agora, com um novo morador.

O Bagre do Rio em meio a uma escuridão plena e assustadora buscava encontrar saídas, caminhos e alimentos, mas, sua percepção ao ambiente sempre foi primordialmente visual, agora sem a presença de luz, sua visão perdera o sentido. Seus olhos tornaram-se um gasto energético desnecessário, ademais, suas cores vibrantes também não tinham a menor importância, pois, o comprimento de luz não incidia naquela caverna.

Deprimido, isolado e faminto, o Bagre do Rio começou a perceber que sua vida mudara bruscamente sem que lhe fosse solicitado, tão pouco de seu desejo, pois não possuía condições físicas e emocionais para o enfrentamento do desconhecido, não daquele jeito sem enxergar, vivenciando a cilada da diferença.

Neste mesmo dia, em busca de alimento, nadando tranquilamente o Bagre Cego de Iporanga percebeu pelas suas desenvolvidas linhas laterais a presença de algo novo, diferente de tudo que encontrara naquela lagoa isolada. Com cautela se aproximou a ponto de não ser percebido dando um bote como faz um predador. Assustado com o que não conseguia ver, o Bagre do Rio, nadou fugindo de quem o atacou, batendo nas pedras e se feriu.

O Bagre Cego de Iporanga aproximou-se dele, verificando que se tratava de um outro peixe e que não seria uma presa e tão pouco um predador.

Com suas nadadeiras laterais, o Bagre Cego de Iporanga levou o desconhecido até sua casa, tratou dele, alimentou-o e ouviu do Bagre do Rio a história de como chegou até ali.

Pensativo, o Bagre Cego de Iporanga percebeu o problema instalado e concluiu que precisaria fazer algo para ajudar, pois, uma visão para um ambiente sem luz é como asas para quem não voa e pernas para quem não caminha.

Iniciou a partir daquele instante um novo processo de adaptação em que o Bagre Cego de Iporanga a cada dia orientava o Bagre do Rio como perceber o ambiente, como capturar alimento, como viver e porque não como ser feliz sem enxergar.

Se tiver a oportunidade de visitar essa caverna, poderá encontrar dois peixes nadando lado a lado, sendo um deles ainda em fase de adaptação ao universo de quem não precisa ver para viver.

Tudo é uma questão de adaptação, perspectiva e oportunidade!

Percebam que nem sempre a inclusão e acessibilidade são direcionadas a quem possui deficiência e que os “padrões” são aspectos particulares a cada situação.

NOTA: O Bagre Cego do Iporanga existe, assim como a caverna do qual tem a formação da lagoa como sua morada. Este peixe de caverna foi a primeira espécie descoberta e catalogada no Brasil.

Histórias como esta servem para nos mostrar que tudo depende das condições e circunstâncias que nos encontramos, podendo ser vivenciadas no mundo real dos peixes, pássaros, anfíbios, répteis e até mamíferos dentre eles, o Homem.

Este texto foi escrito em parceria com o Dr. Márcio Rogério Penha, Biólogo, do Departamento de Psicobiologia da FFCLRP-USP com quem tive a honra de dividir a sala de aula nos tempos da faculdade.

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