Ânus e opinião: todo mundo tem

Ânus e opinião: todo mundo tem

Um querido familiar me mandou um vídeo de uma garota (Marcela Tavares) me pedindo uma reflexão sobre a tal peça de teatro em que atores examinam o ânus um do outro. Até o momento, não tinha me interessado na peça, pois não sou muito chegado em teatro e, ânus, bem, nada de novo: todos temos.

A garota do vídeo meio histérica estava indignada com essa peça. Confesso que depois vi outros vídeos dela e... a mesma coisa. Basicamente, um bebezão lamentando e chorando pelo mundo cor de rosa que terminou. Fala mal de Zé Celso Martinez Correa, fala mal da contemporaneidade, fala que “isso não é arte!!!”, chama os atores da peça de vagabundos e manda todo mundo ler Brecht, Bukowski que, diga se de passagem, adoraria a peça. De acordo com a atriz, "o ânus serve apenas para cagar" (ela grava o vídeo sentada em uma privada) e faz uma relação do cagar com o que sente pelo governo que não incentiva a verdadeira arte no país. Quanto a Marcela, não tenho absolutamente nada mais a dizer: apenas mais uma revoltada-contra-tudo-que-há-por-aí.   

Tive um impulso de sair pela internet procurando mais informações sobre essa tal Marcela e sobre esse tal grupo de teatro mas resisti e me limitei a minha ignorância, que, em tempos de gente que sabe tudo, é um bom diferencial.

(Só é bom dizer que, ao contrario do que muitos dizem, a peça não "recebe milhões do governo" e sim do "sistema S" que é formado por organizações e instituições todas referentes ao setor produtivo - SESC, SENAI, SENAC etc.)

A internet virou um bom espaço para as pessoas mostrarem como são conscientes, politizadas e um canal para fazer fluir o velho é bom narcisismo: mostrar como sabem sobre exatamente tudo. E na verdade essas pessoas, estão emitindo opiniões que - assim como o orifício anal, todos temos.

Mas algo bem diferente de opinião, que é bem pessoal, existem os fatos do mundo, os fatos da cultura e fatos científicos que independentemente se você é contra ou a favor, existem.

A arte livre, abstrata e obscena, existe. O desejo por igualdade civil entre as pessoas, existe. A terra se movimentando em um sistema solar, existe. São fatos que compoem a realidade e, repito, independem do que eu ou você achamos.

Quanto a arte, sei de maneira bem superficial, que “tudo” pode ser arte, depende muito da apresentação, do contexto, do estudo dos atores e por aí vai. O já clássico Marcel Duchamps, fez uma exposição com um mictório, uma roda de bicicleta e outros objetos nada artísticos. E ainda a arte moderna ou pós moderna é sobretudo um campo livre de experimentação. Eu gosto de ir à uma peça de teatro conceitual? Não. Gosto de ir a uma exposição com fotos de gente morta? Não. Gosto de sertanejo universitário? Não. Mas reconheço o valor de artistas poderem estudar e se manifestar como bem entendem, assim como os cientistas precisam de liberdade para pensar e criar seus métodos.

Não vamos falar de ânus, vamos falar de sertanejo universitário.

Eles cantam a bunda, o "desce até o chão", o abuso de drogas, traição amorosa, preconceitos e muitas outras aberrações que não me cabe listar. Não falam diretamente de ânus, mas falam de aspectos nada agradáveis da nossa cultura: promiscuidade,  traição, inveja, abuso de drogas, ostentação de bens e tudo que não cabe à um ser humano virtuoso, ético e digno. Em perspectiva, prefiro ver atores cutucarem o ânus do que ouvir 15 minutos disso. Poderia preferir o contrário, naturalmente que sim.  

Percebo uma onda infantilóide, sobretudo nesses vídeos de internet que viralizam. Uma agressividade misturada com fantasias infantis de que o “mundo deve ser como eu penso”, em outros termos, uma fantasia infantil onipotente.  Chega a dar a impressão de que “novos Hitlers” estão surgindo, como eu já chamei em outro texto de “ditadura do meu umbigo”.

Não gostar que pessoas fiquem mostrando o ânus em um espetáculo para você é totalmente compreensível. Agora, criar uma campanha contra a liberdade artística, chegando até mesmo a supor um controle dessa atividade, não! Isso vai contra qualquer coisa que podemos chamar de democracia, onde partes diferentes convivem em relativa paz, onde se garante o direito de igualdade mesmo na diversidade de hábitos, crenças e valores.

Todos têm o direito de opinar? Sim. Mas numa democracia, quando a sua opinião não é bem fundamentada e visa humilhar, massacrar ou subjugar o outro, ela não é bem vinda. Mas mesmo assim, pode ser dita. 

Agora um caso pessoal: certa vez assistia a um filme horroroso, com uma cena de estupro de mais de 10 minutos e outras cenas de violência. Fiquei chocado. Além disso, segundo outros critérios que analisei, o filme era realmente péssimo.Só depois percebi essa função meio esquisita da arte, que é causar um desconforto para movimentar o pensamento. O ato de pensar tem relação com a tolerância do desconforto e do diferente dentro de nós e a produção de algo novo ou útil à vida. 

 

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