Deus é cozinheiro?
A neurocientista Suzana Herculano-Houzel é bastante didática e uma cientista dedicada. Reconhecida, foi chamada para espalhar suas boas ideias no TED (evento internacional de palestras). Suzana dedicou-se a praticamente contar números de neurônios e efetuar relações matemáticas entre volume corporal de diferentes espécies, tamanho cerebral e número de neurônios na tentativa de buscar uma resposta para algumas perguntas esquisitas do tipo: “Somos especiais?”, “Somos um ponto fora da reta na evolução das espécies?” “Nosso cérebro é um aparelho divino totalmente diferente dos cérebros de outros bichos?”
Não. Como se sabe, não somos nada especiais.
Corre pela mídia que o nosso cérebro possui o número de 100 bilhões de neurônios. Não são 100 bi de neurônios, são 86 bi. Suzana retirou do nosso cérebro 14 bilhões de neurônios por meio de uma técnica criada por ela.
Prosseguindo a palestra, de 14 min e bastante interessante, somos primatas com cérebro de alta densidade neuronal (número elevado de neurônios por área) e sobretudo nosso córtex é denso. Córtex é sede de funções cerebrais bastante especiais e é considerado como o “algo mais” dos humanos. No entanto, o custo energético do nosso cérebro atinge 25% do gasto de toda energia do corpo. Se fossemos nos alimentar como nossos primos primatas, passaríamos 9 horas por dia procurando e comendo alimentos crus. A solução encontrada foi o cozimento desses alimentos crus, que faz com que de uma mesma porção de alimento pudéssemos extrair uma maior quantidade de energia.
Genial!
Num belo dia, há muito tempo, um cara entediado sentado perto de uma fogueira resolveu queimar carnes ou vegetais. Sentiu o cheiro bom, comeu e achou gostoso. Isso virou uma mania que conservamos até hoje. Essa atividade prazerosa nos permitiu portar cérebros com alto gasto de energia. Veja bem: não significa que, por cozinharmos alimentos, nosso cérebro cresceu, ok? Havia um ou vários homo sapiens que iniciaram a prática. Essa prática foi difundida e se tornou uma cultura (nisso sim somos especiais: em fazer cultura).
Impossível não me lembrar nesse momento do antropólogo Claude Lévi-Strauss e seu texto “O Cru e o Cozido” de 1964. Como coloca, Jéssica Parizotto em seu blog.
"Nele o pesquisador demostra que o homem tornou-se culturalmente mais desenvolvido quando passou a utilizar o fogo como tecnologia para a preparação de alimentos. Para nós, hoje, essa afirmação pode parecer óbvia, mas para a época de sua publicação era uma visão nova, já que o domínio do fogo era considerado mais em relação à sua importância para a sobrevivência do que para o desenvolvimento cultural. Para Lévi-Strauss, o fogo era a ponte que ligava a natureza à cultura.
A natureza, nesse caso, seria representada por alimentos crus que após passarem pelo fogo tornam-se cozidos. Parece simples, mas para homens que acabam de descobrir o poder do fogo a simples passagem de um alimento em estado natural para o estado “cultural” do cozimento é um grande avanço.
Para ele, a cozinha baseia-se em ações técnicas, operações simbólicas e rituais. Utilizando o esquema do “Triângulo Culinário” (explicita as relações de transformação do alimento através do tripé: cru, cozido, podre; o alimento cru-natural, passa pelo fogo e torna-se cozido-cultural e então por influências diversas apodrece e retorna à natureza) para entender outros mecanismos culturais, o pesquisador francês provou que algo que fazemos de maneira intuitiva muitas vezes esconde segredos que contam muito sobre a essência de ser humano."
Suzana em seu trabalho foi motivada por questões relativas à essência humana e busca respostas em termos biológicos e matemáticos. Lévi-Strauss em 1964 não fala de cérebros e neurônios, mas chega à uma conclusão bastante parecida, de que o cozimento foi algo realmente fantástico para o desenvolvimento da cultura, e assim, do homo sapiens como espécie de grande sucesso.
Penso que isso mostra como as ciências, em seus diversos campos de saber, quando bem feitas e relevantes, chegam em pontos bastante semelhantes... o que poderíamos chamar, com bastante imprecisão e boa vontade, de “verdade”.
Se Deus existe, ele é um cozinheiro dos bons. E nós roubamos seu livro de receitas.