Entrevista sobre pets para a Revista Revide

Entrevista sobre pets para a Revista Revide

 

Segue a entrevista completa para a matéria "Vida de cão e gato", publicada na Revista Revide em 13/2/2014 por Cristiane Araujo com fotos de Ibraim Leão e Carolina Alves  

 

CA: SOMENTE PARA CONTEXTUALIZAR, FISIOLOGICAMENTE, QUAIS ÁREAS DO ORGANISMO SÃO ATIVADAS PARA A DEDICAÇÃO COM OS ANIMAIS?

LF: Não gosto de dividir o cérebro e associar esta ou aquela emoção ou comportamento ao funcionamento exclusivo de estruturas isoladas, uma vez que o cérebro funciona de maneira integrada, está ligado à um corpo e, no caso dos humanos, está imerso numa rede de relações de alta complexidade.

Robin Dunbar (psicólogo evolucionista da Universidade de Liverpool) percebeu que existia uma relação entre o número de macacos de um grupo e o volume cerebral. Ele considera importante em seus estudos sobretudo o volume total do cérebro e o Neocórtex – a parte mais externa do cérebro que compõe uma fina camada de células nervosas capazes de realizar um processamento sofisticado de informações. O córtex sozinho não faz nada, mas ele parece ser a sede de habilidades cognitivas e sociais presentes em primatas, e é superdesenvolvido no Homo Sapiens. 

O psicólogo tenta sustentar a hipótese de um “Social Brain” (cérebro social), ou seja, um cérebro que evoluiu no sentido de permitir e promover laços sociais, apesar de ter aumentado seu volume total e seu custo energético. Muito embora o cérebro seja um órgão com grande gasto de energia (com apenas 2% do volume do corpo mas que consome 20% da energia) ele passou no teste da seleção natural e os que o possuem obtiveram sucesso (nosso caso).  

 

CA: FALE SOBRE A RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA COM O ANIMAL ATÉ O MOMENTO DE TRATA-LO COMO MEMBRO DA FAMÍLIA?

LF: Vejo isso com bons olhos porque é inevitável. Temos essa inclinação instintual em estabelecer relações com os outros, seja esse outro um cão, um amigo, um primo, namorado. É típico da relação humana o fator inconsciente do afeto e das representações, em que misturamos sem maiores problemas o que sentimos. De um momento para o outro, deixo de pensar obsessivamente e sofrer pela namorada que me abandonou, porque comecei outro relacionamento. Na mente humana os objetos de afeto são intercambiáveis e o as representações fluem de maneira dinâmica, quando este intercambio pára, acontecem problemas, sentimos certo desconforto.

Nesse sentido, há pesquisas esclarecendo o papel importante dos animais de estimação na redução de estresse e como auxilio terapêutico para diversas patologias. Na década de 50 a psiquiatra e psicanalista Nise da Silveira utilizou animais como terapeutas (Nise os chamava de coterapeutas) junto de seus pacientes esquizofrênicos. Segundo ela, os animais serviam como uma espécie de ponto de referência da realidade, tonando o processo terapêutico mais rápido.

Quando nosso bicho morre, entramos em luto, pois ele de fato é membro da família e um ser no qual depositamos alta carga de afeto.

Nise da Silveira e seu gato Léo

 

CA: DE ONDE VEM ESSA RELAÇÃO?

LF: O ser humano vive em sociedade e necessita urgentemente estabelecer relações com “Objetos” (pela psicanálise, outros seres humanos, bichos, objetos de adoração, o próprio eu). Essa necessidade, em termos biológicos, remonta nossa história filogenética em que formávamos uma tribo de caçadores coletores que se alimentavam mutuamente, caçavam em equipe, compartilhavam experiências, formavam, enfim, uma cultura. O ser humano não tem bons dentes, boas garras, não voa, não tem pêlos o suficiente, não corre, não escala arvores é, portanto, nada privilegiado em termos anatômicos e fisiológicos. Mas temos uma alta capacidade cerebral e ótimas habilidades sociais, que nos permitiram, em certo ponto da nossa história evolutiva, agrupar 10 homens em equipe, atuando de maneira coordenada para caçar um elefante, garantindo assim comida para toda a tribo por semanas. E é essa capacidade de estabelecer relações de maneira quase compulsiva, que nos projeta também a escolher animais de estimação como um objeto de afeto e amor. 

 

CA: OS GASTOS MENSAIS, DE ALGUMAS PESSOAS, COM PRODUTOS DE PET SHOP SÃO ALTÍSSIMOS. COMO FOI A EVOLUÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO PARA TAMANHA A ATENÇÃO VOLTADA PARA OS PETS?

LF: Atualmente, os animais de estimação deixaram de ter uma utilidade prática (caça, vigia) e passam a adquirir uma função simbólica importante, e muitas vezes substituem com efeito a relação com um filho ou um amigo. Deixam de ser animais de estimação e se transformam em um “Pet”. 

Por consequência da redução natural da estrutura familiar, muitos casais optam em não ter filhos. Outro fator, é a dificuldade em se estabelecer relações sociais, com nossos vizinhos, amigos e etc. Assim o “pet” é eleito como alvo de todos os cuidados próprios da maternagem, da amizade e de coisas que antigamente fazíamos com outros seres humanos. Isso mostra como somos capazes de, muitas vezes inconscientemente, estabelecer relações de maneira contínua e não específica, em que um cão, na nossa mente, pode significar a mesma coisa que um amigo, ou um filho querido, e com certa eficiência. 

Por outro lado, esses “Pets” tratados como se fossem seres humanos e mimados com todo tipo de recurso disponibilizado pelas Pet Shops, mostram problemas comportamentais bizarros  como depressão, manias e autoflagelação e sinais de estresse evidentes.

Penso que na modernidade, ficamos inclinados a efetuar relações afetivas mais fáceis, muitas vezes superficiais e efêmeras. A relação via Facebook por exemplo é fácil. A relação com Pet também é muito mais fácil do que a relação humana clássica, em que um toca o outro, tem opiniões diferentes, discutem, ponderam, chegam em um acordo. A relação com os animais não traz os desconfortos e conflitos comuns na relação com o outro ser humano.

 

CA: ANTES, O ALIMENTO ERA COMIDA DE HUMANO E HOJE CONTAMOS COM INÚMERAS DIVERSIDADES, ARTIGOS E ACESSÓRIOS, ETC. COMO FOI ESSA TRANSFORMAÇÃO AO LONGO DO TEMPO NO TRATAMENTO DOS PETS?

LF: Em nome da praticidade e da saúde dos animais, desenvolveu-se uma gama enorme de tipos de alimentos. Vejo que nesse ponto, os cães ganham em saúde e perdem em prazer. Porque eles ainda amam carne e amam caçar.

Os acessórios como roupinhas, sapatos se justificam na medida em que há quem compre, ou seja, na medida em que existam pessoas que compram a ilusão do consumo como forma de se posicionar em um mundo que não nos oferece mais identidade. Em outras palavras: consumimos e nos tornamos alguma coisa. E elas projetam seu consumismo e seus próprios desejos estéticos nos seus “Pets”.

O cão adora o cheiro da carne podre e fezes perfumando seu corpo. Você pode confirmar isso quando eles rolam sobre esses materiais em um passeio no campo. Este seria talvez o perfume mais agradável para ele. Mas o dono coloca Chanel n 5. Há evidentemente um abismo enorme entre o que o cão necessita de fato, o que os donos desejam e o que os Pet Shops querem vender.      

Penso que por mais que haja evidências científicas bastante plausíveis para justificar o modo como tratamos os bicho de estimação, vejo alguma crueldade, pois, privamos os animais de fazerem sexo, de se alimentar de carne crua e de caçar.

Muitas vezes, tenho a sensação de que um cão de rua é mais feliz que um “Pet”. Pois o cão não necessita de cuidados cosméticos, roupas e ser pego no colo a todo momento, e sim estabelecer relações com outros bichos, correr, cheirar e caçar. Por mais que tenhamos modificado suas linhagens genéticas, os animais de estimação ainda têm necessidades instituais básicas que precisam ser satisfeitas de algum modo. Impedir ou dificultar os bichos de realizar necessidades básicas, como sexo e alimentação, penso, é crueldade.     

 

CA: QUAL FOI O PRINCIPAL PONTO DE MUDANÇA NA CULTURA DAS PESSOAS QUE PERMITIU QUE OS ANIMAIS FREQUENTASSEM O INTERIOR DAS CASAS DOS DONOS?

LF: Ha evidentemente o fato de que a maioria das pessoas moram em casas ou apartamentos pequenos e assim o Pet passa a frequentar todos os cômodos da casa. Mas o essencial, como já foi dito anteriormente, é que eles são realmente membros genuínos das famílias, com documento de identidade, seguro de saúde, roupas e etc. Se isso é bom ou ruim, não me cabe analisar. Só posso dizer que inevitavelmente nos apegamos e amamos com muita facilidade o que temos à disposição e o que nos é conveniente.   

 

 

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