Eu? Psicanalista?

Eu? Psicanalista?

Um leitor do blog dia desses me perguntou “qual foi o momento que você acha que se tornou de fato um psicanalista? ”

A resposta não pode ser tão direta pois o psicanalista, diferente do psicólogo ou médico, não recebe diploma, ou seja, não passa por um momento especifico, um rito de passagem que marca sua caminhada para um outro grau (graduação), não recebe um número por meio do qual responde aos órgãos reguladores da profissão (CFP, no caso da psicologia). Mas não é por isso que o termo “psicanalista” não pode ou deve ser utilizado.

Há tradicionalmente a IPA (International Psychoanalytical Association) que congrega e controla diversas sociedades e associações ao redor do mundo preocupadas em difundir a psicanálise e, por meio de seus institutos, formar novos psicanalistas. Não há uma regra rígida a ser seguida, sendo que cada instituto tem suas próprias regras ao que se refere a organização institucional, aceite de candidatos não médicos, e a formação em si (no inglês, training, treinamento) (1)

Mas há consensos.

Quase todas concordam que a formação acontece no desenvolvimento de três atividades, o que é chamado de tripé psicanalítico, proposto por Max Eitingon na década de 20: o estudo da teoria (ou das teorias!), análise pessoal do aluno e supervisão clínica de pacientes que o aluno inicia o atendimento.

Essas três atividades precisam ser desenvolvidas dentro do Instituto, com frequência, duração e outras especificidades determinadas pelo próprio Instituto. Nesse ponto há controvérsias.

Muitos dizem que uma frequência alta de análise de 5 vezes por semana, por 5 anos ininterruptos e a profunda influência do supervisor (analista didata) sobre o aluno causam um efeito que prejudica a criatividade e desenvolvimento do estilo pessoal do aluno e promovem um efeito prejudicial que se manifesta por meio de sentimentos persecutórios e profunda submissão a regras institucionais e a própria teoria (2).

Kupermann aponta que Balint (1948) e Safouan (1985), entre outros, mostram como o processo de institucionalização da psicanálise está fundado sobre tentativas de recalque e; Jean Laplanche em conferência no Rio de Janeiro em 1993, comparou a análise a análise do candidato em formação psicanalítica à análise de crianças, onde a criança comparece segundo o desejo dos pais. No Brasil, temos o caso de Amilcar Lobo, médico candidato a psicanalista no Rio de Janeiro (SPRJ) envolvido na prática de tortura durante a ditadura militar. Foi denunciado por seus colegas, mas a SPRJ se omitiu por muito tempo e tomou decisões nada democráticas; o que levantou a discussão de que os mecanismos de poder instaurados dentro das sociedades psicanalíticas eram reflexos de mecanismo de poder antidemocráticos e violentos, próprios da ditadura da época mas nada adequados a psicanálise. O Brasil vivia, portanto, uma ditadura em termos políticos e em termos da formação psicanalítica (3).

Grosso modo, os Institutos ligados a IPA, oferecem a possibilidade de uma experiência imersiva e intensa na psicanálise, pelo menos quando analisamos a variável tempo. Lacan por exemplo, questionou a formação psicanalítica oferecida pela IPA. Essa dissidência causou, por um lado, a ampliação do questionamento sobre os aspectos da formação pelos próprios membros dos Institutos da IPA e, por outro, o aparecimento das escolas lacaniana. As escolas lacanianas, muito embora critiquem a burocracia da IPA, possuem sua própria burocracia e também oferecem uma experiência intensa de psicanálise, com diferenças pontuais que não me interessa aprofundar agora.

Enfim, psicanalistas se nomeiam ou são nomeados a partir de padrões determinados por seus Institutos ou escolas, ligados a IPA ou a AMP (associação mundial de psicanálise). Ponto final! Seria bom, mas não termina por aí.

Acontece que muita gente se denomina psicanalista e não passa por essa experiência em institutos ou escolas ditas oficiais. E muitas dessas pessoas estudam a psicanalise, fizeram/fazem análise pessoal e supervisão de pacientes; ou seja, submetem-se também ao tripé psicanalítico. No Brasil muito da literatura psicanalítica está associada a estes psicanalistas: Jurandir Freire Costa, Benilton Bezerra Jr., Renato Mezan, Caio Prado Jr., Luiz Roberto Monzani, Daniel Kupermann e outros que geralmente estão associados a universidades que produzem ciência psicanalítica e a difundem de maneira muito importante. Agora eu pergunto: esses autores importantes não são psicanalistas? São psicanalistas teóricos? São psicanalistas não clínicos? São psicoterapeutas psicanalíticos?

Kupermann (3) cria o termo transferências nômades, para condensar a ideia de que vivemos em um período de diluição dos mitos criados em torno das figuras dos grandes mestres (Freud, Klein, Lacan e etc). Ainda, experimentamos um período de abertura político institucional que favorece ou mesmo permite que pessoas e ideia circulem livremente sem necessariamente filiar-se a grupos específicos ou terem que defende-los. Este Zeitgeist favorece a criação de formas organizacionais mais abertas e ventiladas, aliviando o sufocamento e a opressão de um convívio institucional superegóico vivido e exigido nas associações psicanalíticas.

“A tendência ao pluralismo permite, assim, o trânsito por diferentes teorias, mestres e mesmo associações psicanalíticas, caracterizando uma espécie de nomadismo teórico-institucional no qual a fixidez dos lugares previamente estabelecidos é abalada. A condição afetiva para o surgimento deste novo arranjo institucional é a emergência de um arranjo transferencial inédito na história da psicanálise: a transferência nômade no campo psicanalítico (3, grifo meu)

Assim, questiono se o espírito do nosso tempo continua a ser o reflexo das transferências nômades apontado por Kupermann, ou se (re)vivemos um período de fechamento - em que a busca de garantias certificadoras sobrepujam a psicanálise em si; com finalidade de obter um selo de qualidade para o mercado, um “plus” no marketing pessoal e um reforço na segurança narcísica tão difícil de conseguir em épocas de modernidade liquida.  Esse questionamento pode ser objeto de pesquisa mais detalhada.   

Enquanto não pesquisamos, posso arriscar que um psicanalista, desde que decide considerar-se um, está sempre em uma corda bamba. Equilibra-se nela com auxílio de sua análise pessoal, supervisão e estudo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1)    CLAIRE-MARINE FRANCOIS-PONCET. The French model of psychoanalytic training: Ethical conflicts. Int J Psychoanal (2009) 90: 1419–1433               

(2)    OTTO F. KERNBERG. The coming changes in psychoanalytic education: Part I. Int J Psychoanal 2006; 87:1649–73

(3)    DANIEL KUPERMANN. Transferências Cruzadas: Uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro, Revan, 1996.

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