Ordem (pela porrada) e progresso (para poucos)
"O caos é uma ordem por decifrar"
(José Saramago, O Homem duplicado, 2002.
É algo auto evidente. É uma frase clara dita pela boca “sui generis” do Boris Casoy ou outro jornalista: “não há nada que justifique a violência em manifestações. Em uma democracia, a policia precisa defender o patrimônio público e privado e para isso utiliza da força para coibir mais e mais desordem, baderna e destruição.”
Mas, pensando aqui: é tão obvio assim que para defender ou atacar algo precisamos fazê-lo de maneira bruta?
Ou seja, a tática da polícia em reprimir com violência dá certo?
Para Jair Bolsonaro - um sujeito carismático e extremamente simplista - isso dá certo! Ele diz que se seu filho mostrasse sinais de que é gay, levaria porrada e tudo se resolveria. Bom seria se o mundo fosse assim, simples e direto, onde a ordem levaria inevitavelmente ao progresso.
Mas, imagine você iniciando uma DR (discussão de relação) com sua namorada/esposa. Ela ataca; você defende amorosamente. Ela ataca; você defende racionalmente. Ela ataca; você fica em silêncio resignado. Ela ataca, você surta e ataca ensandecido! Pronto! Vocês já brigaram e já era o final de semana romântico. Com essa metáfora quero dizer que muitas e muitas vezes, a melhor defesa é simplesmente a defesa e a cautela.
Você propõe para mim o seguinte cenário: “Imagine se a polícia não atuar energicamente durante uma manifestação, onde os manifestantes já estão quebrando lojas, os vândalos vão quebrar mais e mais, até quebrar todas as lojas possíveis e uma catástrofe vai acontecer.“ Eu sinceramente não sei se isso é verdade.
Sabemos que qualquer manifestação se beneficia do efeito estético que ela produz na sociedade por meio das mídias e da mídia espontânea da internet, de modo que, se ela ganha a simpatia do grande público, há um probabilidade enorme de ela dar certo. O manifestante deseja ser ouvido e ter suas demandas acolhidas e resolvidas pelo governo (repito, pelo governo!).
Mas isso normalmente não acontece!
O que acontece definitivamente é que as mídias acolhem e escutam muito bem essas demandas, mas exigem uma coisa: o espetáculo. Como se a manifestação pacifica fosse chata e não desse audiência. O que dá audiência é aquela manifestação com gente mascarada, levando bomba na cabeça. Sabe aquele ideal romântico do revolucionário que apanha da policia e vence a repressão?
Bom, mas o fato é que a mídia quer sangue.
As pessoas revoltadas querem sangue. Os telespectadores do programa do Datena e do Faustão querem sangue. E o Estado está doidinho para que role sangue para tornar qualquer das demandas impossíveis e injustificáveis. Resultado: rola sangue e muita porrada e não há entendimento e resolução nenhuma.
É uma ilusão pensar que por causa da violência houve consenso e resolução, ou que manifestação sem violência é impossível. É fundamental para uma manifestação bem sucedida a simpatia: coisa singela mas difícil de conseguir.
Então como, afinal, conseguir simpatia do público?
A resposta está em uma das músicas da Valeska Popozuda: tiro, porrada e bomba.
É por meio da violência que se consegue mais facilmente o espetáculo e a atenção da mídia e assim, a simpatia do grande público. Enfim, a violência permite o espetáculo e o espetáculo cria simpatia E a violência só é um meio de se conseguir o espetáculo porque a polícia (o Estado na verdade) colabora e muito.
Pois bem, há uma frase atribuída a John Kennedy que diz mais ou menos que “um país que não garante democraticamente mecanismos para que revoluções e mudanças aconteçam, incita e até justifica a violência como único meio possível". Ou seja, defender o caráter estático de um sistema de relação políticas (ou amorosas) é a abertura para que meios mais contundentes e violentos aconteçam.
Posso dizer que há a possibilidade de que toda violência que assistimos pela TV dessas manifestações sejam resultado de um resposta inadequada da polícia. Não estou acusando a polícia de ser violenta e truculenta, pois ela deve ser assim em certas circunstâncias. Porém, a polícia deve considerar que a defesa do patrimônio público e privado e a garantia da ordem por meio da violência em manifestações têm um efeito semelhante a tentar se apagar o fogo com gasolina. E mais, uma manifestação que poderia acabar com alguns vidros quebrados pode terminar como um grande espetáculo de guerra em praça pública.
Uma guerra existe quando pelo menos dois lados se conflitam ativamente. Enfim, penso que se a polícia ceder, se a polícia utilizar de meios não violentos e mais inteligentes de repressão as histórias das manifestações poderiam ser bem diferentes. É apenas uma hipótese a ser testada.
A frase “ordem e progresso”, ou seja, que para se conseguir um progresso precisamos de ordem e não bagunça, representa a tradição de se pensar mudança como algum ruim e incômodo que deve ser reprimido. Isso faz da sociedade brasileira uma das mais violentas e retrógradas. A maneira com que a polícia se comporta é um sintoma, um sinal sobre o funcionamento da nossa própria vida social e de nossos hábitos familiares. Para mudar isso é preciso eliminar a violência coerção como discurso possível, como ferramenta de ordem, enfim, como garantia de progresso.