Psicanalistas picaretas e desejo de qualidade certificada
O que segue diz respeito a um comentário bastante longo de um leitor. Resolvi responder em partes. Trata-se da temática da formação em psicanálise e a qualidade dos profissionais. As colocações do leitor estão em itálico, entre aspas e sem alterações de conteúdo.
“Fui analisado durante muito tempo, ficando bastante frustrado com o que encontrei: pseudo-terapeutas que nada sabem de psicologia, psicanálise ou que que quer que seja, porque para abrir um consultório de psicanálise não é preciso ter estudado tanto assim. Aliás, cheguei a conhecer “analistas” que mal leram Freud, o que não os impediu de sair por aí analisando os outros. Quanto às minhas sessões, consistiam em observar um sujeito olhando para minha cara sem dizer nada e cobrando caríssimo.Aliás, desde o tempo de Freud se entende que para ser analista basta ter passado por análise didática, pouco importando se a pessoa que vier a abrir um consultório tenha conhecimentos mínimos de psicologia, de medicina ou de qualquer outra coisa.”
R: Concordo com você. Como em qualquer outra profissão há variação grande em termos da qualidade dos profissionais. Em qualquer curso profissionalizante ou de graduação não se garante 100% a qualidade dos profissionais. Isso é um problema que se tenta resolver por meio de processo seletivo, avaliações e supervisões. No caso da psicanálise - pelo menos a psicanálise que eu conheço - isso é feito de maneira séria. Mesmo em um curso de medicina de universidades públicas que são bastante concorridos e controlados por órgãos federais e estaduais, há uma variação normal da qualidade, empenho e caráter dos profissionais formados.
“Como técnica terapêutica a psicanálise é de uma nulidade atroz.”
R: Se fosse de uma nulidade atroz, a psicanálise não existiria mais na face da terra e não atrairia tanto interesse de intelectuais, médicos, neurocientistas, etc. E mesmo você, que levou certo tempo redigindo este texto.
“O problema é que a psicanálise considera uma espécie de blasfêmia, de absurdo intolerável a mera cogitação de regulamentação da profissão.”
R: A psicanalise é regulamentada, mas não em âmbito federal. Os grupos psicanalíticos em sua maioria são contra a regulamentação federal. Regulamentar significa subjugar as Sociedades e Grupos de psicanalise à ditames federais o que pode não garantir qualquer tipo de certificação de qualidade ou benefício. Outro problema é que aqui no Brasil, essas tentativas de regulamentação, em sua maioria, foram tentativas de duas naturezas: (1) transformar a psicanálise em uma atividade restrita à médicos e psicólogos e (2) tornar a psicanálise algum tipo de reduto de ideologias cristãs/evangélicas. Há muitos psicanalistas favoráveis a regulamentação mas não há um consenso sobre isso, portanto a palavra "blasfêmia" não se aplica porque o assunto é bastante discutido pelos psicanalistas.
“Há um número considerável de psicanalistas que são absolutamente incompetentes para fazer um diagnóstico, de tão rasa e medíocre sua “formação”.”
R: De fato, pessoas com pouca noção da psicopatologia psicanalítica não poderão se quer fazer um diagnóstico. Pouco importa ao paciente psicanalítico saber se ele tem isso ou aquilo e um psicanalista não deveria realizar esse tipo de intervenção, muito embora esteja autorizado a fazê-lo. Um psicanalista não atua dando (ou vendendo) diagnósticos à pacientes. Se você deseja isso procure um médico psiquiatra ou psicólogo. Um psicanalista é apenas um psicanalista. Possui seu método de trabalho próprio e suas limitações inerentes a própria técnica.
“Portanto, impossível concordar que a psicanálise é rígida em termos de formação e supervisão, porque nunca vi, repito, nunca vi, um completo boçal ou picareta ser impedido de ser psicanalista por nenhuma sociedade de psicanálise. Aliás, caso você não saiba, há cursos de “formação” de analistas pela internet.”
R: Caso você não saiba, a formação psicanalítica é rígida porque conta com análise pessoal, supervisão de casos e estudo teórico, por um tempo mínimo de 4 a 5 anos. É impossível ter um controle de qualidade que certifique os profissionais em termos de serem boçais ou picaretas. Existem médicos fazendo diagnósticos sem sentido e cometendo erros grosseiros; políticos corruptos; psicólogos moralistas e religiosos; pedreiros picaretas... Não haveria de ser assim com a psicanálise também? Afinal de contas é uma "profissão" como outra qualquer. Acho que EADs são bastante interessante como cursos introdutórios e não acho confiável uma formação em psicanálise à distância. Sei bem de cursos de formação de psicanálise pela internet que dão número e carteirinha ao psicanalista, criando uma idéia de oficialização e controle de qualidade. Francamente, não sei onde você se meteu em suas experiências com a psicanálise mas lhe digo que nenhum psicanalista sério acredita ou apoia isso. Se você nunca viu psicanalistas serem expulsos de Sociedades por desvios éticos eu já vi sim, e há relatos na literatura internacional sobre isso. Procure o autor Glen O. Gabbard que se dedica ao tema da violaçào dos limites éticos. E caso queira tenho uma dezena de artigos sobre o tema.
“Quanto a dizer que a psicanálise conta com mais de cem anos de ciência, é preciso lembrar que o método psicanalítico não tem rigorosamente nada de “científico”, já que os psicanalistas interpretam o que o analisando diz do jeito que bem entendem. Dez psicanalistas diferentes fazem dez “diagnósticos” inteiramente distintos sobre o mesmo caso, fora que os próprios psicanalistas são inteiramente avessos a qualquer avaliação isenta e objetiva dos índices de melhora ou de cura feitos por pessoas de fora. Se é “ciência”, é uma ciência bem diferente, porque não tolera críticas nem questionamentos, bastando que os analistas digam que “curam” para que tal assertiva seja considerada “provada”.”
R: De fato, a psicanálise não é uma ciência strictu sensu, ou “ciência Popperiana”, como a teoria da evolução darwiniana também não é. Mas pode ser considerada uma ciência se você admitir que a psicanalise possui uma metapsicologia, uma teoria do desenvolvimento, uma psicopatologia e uma metodologia de intervenção psicoterápica. Impossível pensarmos em uma psicanálise fora do espaço clínico, que não seja subjetiva e interpretativa. As neurociências e psicanálise veem flertando há algum tempo, com muitos pontos concordantes e muitos outros divergentes. Há um monte de artigos de ciências duras que comprovam a eficácia da psicanálise como método psicoterápico. Mas esse tipo de comprovação de fato importa pouco aos analistas. Eu, particularmente gosto desses estudos “hard”, talvez pela minha própria formação em neurociências.
Finalmente, leitor, lamento que sua experiência na psicanálise tenha sido tão frustrante!
Obrigado e Boa Sorte!