Tempos de pandemia, novo normal ou qualquer bobagem 1: o atropelo da Ciência e da Prudência

Tempos de pandemia, novo normal ou qualquer bobagem 1: o atropelo da Ciência e da Prudência

"Não, nossa ciência não é uma ilusão.

Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar,

podemos conseguir em outro lugar." 

(Sigmund Freud. O FUTURO DE UMA ILUSÃO, 1927)

 

Uma coisa que essa pandemia fez foi espalhar pelo mundo ótimas chances de cairmos em ciladas. O termo “Tempos de Pandemia” representa bem uma dessas ciladas. Outro termo é o “Novo Normal” que toca fundo os corações mais entediados.

Creio que mais da metade de todas as “lives” (todas muito imperdíveis!) utilizaram estes termos. Recentemente até brinquei com isso, propondo uma “live” imaginária chamada: “O preparo do bolo de fubá em tempos de pandemia” – que obviamente não aconteceu.

De um dia para o outro, fazer um simples bolo de fubá, ganha glamour. O glamour de ser feito em “tempos de pandemia”, como se tal termo conferisse um selo de importância maior. Abriu-se caminho para um “novo”, que de novo nada tinha – assim como a tal “Nova Política”. Aquele “museu de grandes novidades” do Cazuza.

É comum do marketing, criar demandas. Quero dizer: apresentar às pessoas algo que nem elas sabiam que desejavam. É um mecanismo super útil para vender, mas - em certas profissões, como no caso da Psicologia, há uma ética que se deve seguir, bastante diferente da do Marketing.

Não sabemos em que tempos vivemos, pelo simples fato de estarmos vivendo neste tempo. Não podemos ser tão autoconscientes assim. Teremos alguma noção mais clara só depois. É bom ter prudência. 

Sinto que de repente perdemos a calma e atropelamos princípios básicos da construção do conhecimento. Para conhecermos certo fenômeno, precisamos de tempo, calma e método. Só que não. Do dia para a noite, pipocaram especialistas dos “tempos de pandemia”. E aí estão as ciladas.

Um lugar comum criado e divulgado amplamente foi o de que o "isolamento social gerou algum tipo de angústia psicológica". Será mesmo? Tenho dados de que não.

É fato de que o contato social, por si, traz mal estar (ler o velho e bom Freud, O Mal estar na civilização) e com o distanciamento e consequente redução do tempo de trabalho e contato social obrigatórios, muitas pessoas, estranhamente, sentiram se mais felizes. Mas isso é apenas uma percepção minha e de poucos colegas... E então, casos interessantes sobre este conflito de pacientes se perguntando: mas porque será que estou bem? Será que sou um psicopata que odeia as pessoas?

O que quero dizer é que absolutamente não sabemos se as pessoas estão ou não mais angustiadas. Temos, aqui e ali, percepções pontuais que não formam um corpo científico suficiente para anunciarmos aos quatro ventos (ou quatro lives ...) que as pessoas estão angustiadas ou não. Situação semelhante vem ocorrendo com medicamentos sendo indicados para tratar a COVID sem o necessário acúmulo de evidências.

É bastante criticável o comportamento de Jair Bolsonaro, quanto a propaganda da Hidroxicloroquina, certo? Mas por quê?

Primeiro, não há evidencias acumuladas o suficiente para a indicação, tão pouco a disponibilização pública desta terapêutica. E segundo porque o comportamento de Jair Bolsonaro INDUZ as pessoas a procurarem o medicamento. Há outras questões, mas vou parar por aqui. 

Da mesma forma que criticamos o comportamento de Jair Bolsonaro, que induz as pessoas a buscarem a Hidroxicloroquina como panaceia, podemos criticar psicólogos que espalham que atualmente (o tal “tempos de pandemia”) sentimos necessariamente angustia, medo, baixa autoestima e ansiedade.

Critico portanto este expediente de profissionais afirmarem alguma coisa que não sabem cientificamente (angústia em tempos de pandemia), criando uma demanda de auxílio psicológico, ardilosamente, induzindo as pessoas a recorrerem ao serviço psicológico que prestam (Código de Ética do Psicólogo, Art 2, item i). Soma-se a isso a conveniência das terapias online a enorme oferta e pronto: temos um cenário propício a ciladas de todo gênero. Acontece é que a pós-modernidade transformou cada sujeito numa espécie de "cientista de si mesmo", que elabora teorias novas e revolucionárias sobre tudo, vende e-books, lives e cursos. A ciência prática, rápida e eficaz.  

Como já dito, tenho percebido certa demanda  no consultório de pessoas que lamentavelmente caíram nessas ciladas online (lives e terapias online), e procuram terapia presencial com medo de estarem loucas, pois não estão se sentindo mal o suficiente. Outra demanda é de pessoas que descobriram que tudo que sentem se resume à “traumas de vidas passadas” ou a “energias negativas” do ambiente, “pessoas tóxicas” da família ou que simplesmente a solução é aumentar a auto-estima (“ser você mesmo”, perder peso ou fazer uma plástica). E por aí vai.             

Talvez eu tenha sido muito positivista neste texto, mas sigo assim. O processo cientifico é lento e vai contra qualquer imediatismo. Da psicanálise podemos extrair certa prudência de sustentar a dúvida, o silêncio, a angústia, o que pode ser útil.

Sobretudo em "tempo de pandemia" (risos).

 

 

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