Tempos de pandemia, novo normal ou qualquer bobagem 2 – A psicoterapia online

Tempos de pandemia, novo normal ou qualquer bobagem 2 – A psicoterapia online

Há a presença do analista/terapeuta online? Sim, há.

Do outro lado da câmera de fato há um analista e um paciente compartilhando a simultaneidade do tempo. Cria-se então um novo setting, um campo transferencial e a análise sim, pode acontecer (o que é diferente de funcionar, é bom dizer).

No nosso consultório temos o controle de variáveis do tipo, temperatura, barulho, impedimos que intrusos entrem na sala e etc. O ambiente online é mais difícil de controlar: é preciso que ambos tenham uma boa conexão de internet, um local reservado livre de intrusos, e muita sorte para que a conexão não caia, fique lenta, intermitente.

Portanto, o ambiente online oferece uma gama maior de variáveis que não podemos controlar e que, habitualmente, em nosso consultório fazemos questão de controlar. Isso por um lado pode gerar insegurança no analista e, por outro, pode gerar elementos novos que poderão fazer parte da análise e não necessariamente atrapalhar ou impedí-la.        

Uma questão colocada por muitos de nós “profissionais psi” - de março de 2020 para cá - foi se devemos interromper ou não o trabalho de análise/psicoterapia: uma pausa? O fim? Uma continuidade no modo presencial?

Assim, quais seriam os danos decorrentes da pausa ou fim? Danos financeiros ao analista? Danos psicológicos ao paciente? Em médio ou longo prazo, o dano da pausa seria maior ou menor que a continuidade da análise em ambiente online? Não sei responder.

Uma das elaborações de Freud (1), que penso ser fundamental ao trabalho do analista é a seguinte:

“E, finalmente, não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade – isto é, no reconhecimento da realidade – e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano” (1).

A realidade como a conhecemos é posta em dúvida pelo filme “Matrix”, em que seres humanos escravizados por uma máquina, são alimentados eletronicamente com todos os requisitos sensórios para a construção de uma realidade bastante concreta. A vida de quem estava ligado a Matrix corria normalmente, porque todos os elementos sensórios, motores, bioquímicos estavam presentes. O filme “Avatar” também reforça essa ideia: de que uma experiência concreta de realidade completa pode ser obtida via processos digitais integrados a bioquímica neural.

Obviamente estamos falando de obras de ficção, mas, que nos explicam como a realidade que percebemos e experimentamos é composta de múltiplos elementos, não só som e visão.        

É realidade que atualmente temos ferramentas de comunicação que nos permitem simular a presença tanto em termos auditivos quanto visuais. Pode parecer uma maravilha tecnológica aos que, como eu, quando criança, conheceram o telefone ou o orelhão com ficha. Mas, questiono: o simulacro da presença visual e auditiva completam a experiência da presença? Penso que não. A experiência sensória e motora completa da presença, por enquanto, só pode ser obtida da maneira antiga: estando lá. Aceitemos.

Eu não gosto do atendimento online. Primeiro, já experimentei como paciente - em mim mesmo - sessões online e não me habituei. Segundo, porque não estou qualificado para tal neste momento. E um terceiro ponto, que me leva a excluir esse tipo de atendimento, é que atualmente o atendimento online vem sendo vendido indiscriminadamente nas redes sociais, como substituto da psicoterapia tradicional presencial. Prefiro me desassociar deste movimento, que reconheço como um “movimento de mercado” em tempos de crise e não um movimento científico.   

Médicos, Enfermeiros, Assistente Sociais e Psicólogos que hoje arriscam suas vidas na linha de frente contra a COVID-19 poderiam ser substituídos por robôs teleguiados tranquilamente. Cada profissional, no conforto de suas casas, poderia controlar um robô, que garantiria a realização dos procedimentos a distância (medir temperatura, assinar formulários, dar informações, dar diagnósticos, acolher certas demandas). Procedimentos cirúrgicos já são realizados por robôs teleguiados com excelência, mas o trabalho em ambulatórios ou hospitais, que exigiria a movimentação e interação do robô no espaço físico, ainda não é possível - por limitações técnicas creio. Então, por hora, os profissionais da saúde devem aceitar o risco de seu trabalho. O risco de estar lá.

O Conselho de Psicologia de São Paulo recomendou (ler 2 e 3) que os profissionais evitem o atendimento presencial, o proibindo nos seguintes casos: atividades que gerem aglomerações (terapias grupais e etc.), impossibilidade de seguir as medidas de prevenção da OMS (máscara facial, lavar as mãos, álcool gel, sala arejada, distanciamento, limpeza constante do ambiente e etc.) e em atendimento com pessoas idosas ou do grupo de risco.    

De fato, não houve uma proibição quanto ao atendimento presencial, mas sim recomendações quanto a alternativas possíveis e quanto aos procedimentos de higiene e distanciamento. Ouvi muito que “em tempos de pandemia o psicólogo DEVE atender online”. Entretanto, na verdade, ele PODE atender online. O que o psicólogo DEVE é atentar-se a um dever explicito de seu Código de Ética de “assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente” (CEP, Art. 1º, item b.)

Creio que a psicoterapia, sobretudo a de orientação psicanalítica, é um trabalho com riscos inerentes. Um dos riscos é estar ao lado do paciente, estar presente, estar em certos momentos bastante próximo. Entendo que esse risco é inalienável, ou seja, se não há este risco, não há uma análise - pelo menos não estou suficientemente convencido disso neste momento.

Se eliminarmos a presença (física), estamos realizando um simulacro de análise, um experimento, mas não uma análise como a conhecemos há mais de 100 anos. A terapia/análise online foi o que sobrou para muitos de nós nesses tempos. É a exceção, não a regra.  

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REFERÊNCIAS

(1) FREUD, S. Análise Terminável e Interminável, 1937 –E.S.B. Vol. XXII

(2) As orientações sobre atendimento presencial? - https://www.crpsp.org/noticia/view/2489/crp-sp-responde-quais-as-orientacoes-sobre-atendimento-presencial

(3) Quais as recomendações para a atuação diante da Covid? - https://www.crpsp.org/noticia/view/2482/crp-sp-responde-quais-as-recomendacoes-para-a-atuacao-diante-da-covid

 

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