As referências de Wandinha Addams
Wednesday's child is full of woe
Wandinha Addams é a filha mais velha de Gomez e Mortícia Addams; irmã de Feioso e sobrinha do Tio Chico. Atualmente, é também a série mais popular da Netflix. Wandinha tem uma personalidade forte e penetrante, acentuada pela decisão da atriz Jenna Ortega e do diretor Tim Burton de que a menina não iria piscar (na prática faz muita diferença mesmo). A série inicia com a expulsão da menina do que seria a oitava escola em um período de cinco anos; cena acompanhada de um discurso que deixa claro o desprezo da personagem por escolas em geral. Mas não se engane, não gostar de escola é diferente de não estudar, e Wandinha deixa isso muito claro ao citar Maquiavel, Edgar Allan Poe, Sartre, Agatha Christie e Mary Shelley, além das diversas referências a leituras e estudos dos temas que mais a interessam.
Você já deve ter se deparado pela internet com diversos artigos que explicam a origem do nome da Wandinha, que no idioma original é Wednesday, ou seja, quarta-feira. A explicação, na verdade, não é difícil. A mãe da menina, Mortícia, explica para a diretora da Escola Nunca Mais que o nome da filha foi inspirado em um poema infantil, citando o trecho “Wednesday's child is full of woe”, em tradução direta: “A criança de quarta-feira está cheia de aflição”.
Apesar de “woe” ter a tradução mais comum como “aflição”, a equipe de tradução preferiu usar o termo “desgosto” em português. Aliás, todos os títulos dos episódios em inglês contêm a palavra “woe”, o que a tradução abandonou nos episódios “Toma lá, não dá cá” e “Se não me conhece ainda…”, cujos títulos originais são “Quid Pro Woe” e “If You Don't Woe Me by Now”, em tradução direta: “Dado por aflição” e “Se você não me aflige agora”. Ah, o título “Quid Pro Woe” tem origem na expressão em latim “quid pro quo”, que significa “algo dado a uma pessoa em troca de outra coisa” de acordo com a definição do dicionário de Cambridge; expressão utilizada para indicar confusão ou engano: “isto em vez daquilo”. O jogo de palavras feito no título original do episódio substituiu o termo em latim “quo” por “woe” (de pronúncia muito próxima), mantendo a ideia de fazer a palavra constar em todos os títulos e indicando que no episódio será revelado que uma aflição na verdade é outra (não é spoiler se está no título do episódio). Bem, “Um desgosto por outro” me parece um título muito melhor do que o escolhido pela equipe de tradução... mas quem sou eu para criticar?
Então vamos seguir com as citações de Wednesday (sim, vou chamá-la pelo nome original a partir de agora). Primeiro aprendemos que a menina entende bem o italiano quando ela lê um manual de instruções. Ao questionada sobre o idioma, ela cita que é a língua de Maquiavel. Nicolau Maquiavel foi um filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico de origem florentina do Renascimento. É reconhecido como fundador do pensamento e da ciência política moderna pelo fato de ter escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. Italiano, nascido em Florença em 3 de maio de 1469, mesmo local de seu falecimento em 21 de junho de 1527, Maquiavel tem como principal obra O Príncipe, cuja primeira edição foi publicada postumamente, em 1532, e descreve as maneiras de conduzir-se nos negócios públicos internos e externos, e fundamentalmente, como conquistar e manter um principado, ou seja, um guia para como se chegar e manter-se no poder.
Wednesday não é uma leitora superficial, mas aprende profundamente aquilo que lê, ao exemplo da frase de Edgar Allan Poe que a menina tomou como lição de vida: “Não acredite em nada do que você ouve, e apenas na metade do que você vê”, trecho do conto O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena, publicado pela primeira vez em 1845. A participação do autor de contos macabros é ainda muito maior na série, inclusive, sendo a origem do tão famoso duplo estalos de dedos que acompanha o tema musical da Família Addams. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Allan Poe foi um dos primeiros escritores norte-americanos de contos e é considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Outra lição literária que Wednesday nos ensina é a expressão “O inferno são os outros”, dita por uma das personagens da peça de teatro Huis clos (“Entre quatro paredes”, na tradução brasileira), do francês Jean-Paul Sartre, escrita em 1945. A frase também é título de uma música do grupo de rock brasileiro Titãs, mas não foram eles que inspiraram Wednesday, embora a música seja muito boa. Outra leitura que a menina tomou por lição de vida é a frase “Toda coincidência é sempre digna de nota. Mais tarde posso descartá-la, se for só coincidência”, do romance policial Nemesis, de Agatha Christie, publicado em 1971.
A série dá relevância a pretensão de Wednesday de se tornar uma escritora e, por isso, não poderia deixar de citar aquela que a menina considera sua grande rival: Mary Shelley. Embora, infelizmente, poucas pessoas ouviram falar da autora, com certeza todos já ouviram falar de sua obra: Frankenstein, considerada a primeira obra de ficção científica da história. Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, o que revela um desafio particular de Wednesday, que com 16 anos pretende escrever sua obra-prima enquanto for mais nova que sua rival. O desafio não é fácil, porque Mary Shelley era mesmo genial; Frankenstein obteve grande sucesso e gerou todo um novo gênero de horror, tendo grande influência na literatura e cultura popular ocidental. Infelizmente (de novo), poucos conhecem a história original, sendo que a grande maioria das pessoas foi levada ao erro de acreditar que Frankenstein é o nome do monstro, quando, na verdade, é o nome do protagonista do romance, o estudante de ciências naturais Victor Frankenstein.
A série Wandinha (clique aqui para assistir ao trailer) é uma produção original Netflix, disponível em oito episódios, dirigida por Tim Burton e estrelada por Jenna Ortega. Os criadores são Alfred Gough e Miles Millar, os mesmos de Smallville. A série é realmente muito boa e vale a pena assistir... ou seria melhor ler um livro?
Luís Gustavo Conde
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