A sangue frio

A sangue frio

        E a semente pulsou, arrebentou o peito do homem, expôs o oco do tronco, cheio de formigas e cupins, a seiva correu solta, braços evoluíram para galhos; dedos, para ramos; olhos, para nódulos; pele virou casca; pés fincaram no chão, dedos raizes sustentaram o peso da idade e dos pecados; das orelhas brotaram flores em forma de copos; dos cabelos, as trepadeiras. O árvore era carcomido por dentro todos os instantes, todas as horas, todos dias, meses, anos. À medida que as folhas caíam, transubstanciavam-se em adubo. O solo arenoso ficou fértil até o próximo vendaval. À medida que os galhos cresciam, entravam no peito de outras árvores. O processo se iniciava. As mais fracas tomavam sobre as outras que decidiam se valia a pena segurá-las ou não. Todas se feriam com galhos penerantes ou se enforcavam, trancando-se debaixo da terra. A água para alimentar a seiva só era vampirizada pelas de raízes profundas. Somente cupins, formigas e excrementos ácidos de aves de pelas plumas as derrubavam. 
        Sabe o que as incomodava os olhos? Não? A mesmice. Pregadas no chão, a cabeça percebia as nuvens brincando de mudar as formas do céu. O mato mudando as formas do chão. Nada podia fazer contra o destino que se impôs.
        Sol e Chuva; chuva e sol: amigos, inimigos da mesma devassidão: acariciavam e evaporavam ou se escondiam. Enchiam e desenchiam os copos de leite.
        Os dias correm em uma mesmice inquietante: guerras de galhos e raízes ocorrem debaixo da terra. Enforcam-se silenciosamente. Distribuem seu hálito durante o dia e o mau hálito durante a noite.
        E as ervas daninhas, onde entram nesta história? Na sentença de morte, uma raiz de cada vez, até provocar a anemia. A queda do portento que será transformado, invernizado para virar móvel imóvel em uma casa. O ciclo agora é outro, as formigas e os cupins também. Cambaleante e imprestável, é jogado no meio do lixo. 
        E o ciclo é de uma mesmice inquietante.
        Árvores deixam sementes. E elas não caem além da sombra. Não sei se você sabe.

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