DESVIDA NAS ALTURAS

DESVIDA NAS ALTURAS

Há uma terra, tão terra, tão chão, tão seca chamada Cisjordânia. Sobre ela chovem bombas. Bombas desconhecem seres humanos. Chovem tiros. Tiros estupram o ar. Homens enterram suas vidas para manterem delimitadas suas fronteiras.

Há belíssimas histórias de mártires, que adubaram terras e mais terras com sangue. Há histórias cruéis de corpos crivados de balas. Uma argamassa os juntou. Chama-se ideal.

A história da Cisjordânia se confunde com a dos filhos, que os pais renegam: não pertence de jure a nenhum Estado. É também a de um povo forte, orgulhoso, guerreiro. Os jornais do ocidente só reconhecem essa terra, tão terra, tão solo, tão raiz, quando metralhadoras gritam, corpos aparecem empilhados nas ruas.

Não há páginas no ocidente dedicadas à arte e ao canto. A Cisjordânia só existe como bala, como tragédia. Então, eu, cultivador e manipulador de palavras, vou correr o risco de contar a história de um amor tão visceral, tão denso, tão guerreiro, que pode cortar como faca.

Rasmi Suwaiti gestou Jihad Al-Suwaiti há trinta anos. Criou-o, como aos guerreiros do seu povo: um homem capaz de dar a vida pelos seus. Não tenho a pretensão de contar a história desses dois seres humanos. Não conseguiria traduzir a força do lirismo trágico que ela encerra.

Rasmi Suwaiti viveu seus setenta e três anos, lutando contra a morte, encarando-a, olhando-a nos olhos. Venceu metralhadoras, prisões, fome, seca, canhões. No Hospital de Hebron, o câncer e o coronavírus a torturavam dia a dia, minuto a minuto, segundo a segundo.

O câncer começou a corroê-la, minando-lhe a resistência. O vírus oportunista atacou. Enquanto câncer a apodrecia, o vírus a sufocava. Certos inimigos cedem um último pedido ao moribundo; outros permite jamais. O câncer, pelo menos, permite a carícia através do toque, da troca de olhares, da fala; o vírus não, expulsa qualquer contato, sentido ou sentimento.

Jihad Al-Suwaiti, protagonista da própria história, subia pelos canos pregados nas paredes do hospital até chegar à janela de onde podia acompanhar a agonia de Rasmi Suwaiti. Precisava responder à interrogação de todos os dias: ela ainda estaria viva ou já estaria morta?

Este escrevinhador para por aqui, senão confinará no papel uma história tão visceral: mãe, câncer, vírus, filho, obstáculo, impotência, morte, amor e resistência. A resistência encerrada naquela magnífica foto de Jihad Al-Suwaiti, sentado na janela do hospital, lá nas alturas, com os olhos fixos na mãe doente, morta em vida. Com sua força, adubará a terra, tanto quanto a sua morte destroçou o coração do filho.

 

 

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