É apenas mais um - disse a mulher do motorista

É apenas mais um - disse a mulher do motorista

(o Boca do Inferno - não)

A mulher do motorista, que ficou famoso, porque morreu, pespegou na nossa cara embasbacada as seguintes frases diante das câmeras dispostas a captar suas lágrimas:"A gente já se acostumou, a dor supera a revolta. A revolta existe, mas a dor é maior. Estamos imersos nisso que está acontecendo. Estamos nos acostumando. Como dizem, é mais um. São várias pessoas nessa mesma situação no Rio de Janeiro".
Olhos marejados, narrou sua história para as câmeras impacientes, enlouquecidas por uma lágrima. Decepcionadas, deram-lhe 2 minutos de fama. Sua história tão igual à maioria das narrativas dos invisíveis sociais. Carimbo de quem mora neste país eternamente à espera de "salvadores". Narrativa mais para resignada do que para emocionada. Sabe que as balas a atingiram em cheio. "A revolta existe, mas a dor é maior"
Anderson Gomes, ah! já não é mais um anônimo neste artigo, e Ágatha Arnaus Reis (tive que pesquisar o nome) formavam um casal jovem, cujo filho possui uma doença congênita. "Estamos nos acostumando. Como dizem, é mais um".
Ela é funcionária pública e não sabe o que fazer agora. O marido fazia bico de motorista, para sustentar a família: "Estamos nos acostumando. Como dizem, é mais um".
Ágatha crê na máxima de que Deus o levou com algum propósito, que ela não sabe qual é. "A gente já se acostumou, a dor supera a revolta".
Anderson tem seus 15 minutos de fama, porque morreu do lado de um símbolo. Marielle, devido às suas várias lutas e à defesa intransigente de causas importantíssimas, já se tornara um símbolo há tempos, tanto que sua voz penetrou em 46 mil pessoas. Anderson era apenas mais um que tinha dois, três empregos para sustentar a família em um estado miserabilizado pelos seus governantes. Sua luta era a favor da sobrevivência. " Estamos imersos nisso que está acontecendo".
Treze tiros mataram um corpo, mas não mataram ideias, ao contrário, engajou mulheres anônimas nas diversas lutas em prol dos seus direitos. As balas que vieram desconstruir, construíram. Então, há muita gente capaz de se indignar. Infelizmente, Marielle teve que morrer para tirá-las das sombras. Teve que morrer para trazer à luz o que todos já sabem, a inépcia das autoridades. "Estamos imersos nisso que está acontecendo". 
Voltando à narrativa sobre Anderson e Ágatha - razão de artigo. "Matam" mais que tiros, as frases da jovem Ágatha: "São várias pessoas nessa mesma situação no Rio de Janeiro". "Estamos nos acostumando". Acostumando à corrupção deslavada, acostumando.
Essas frases me lembram um fato absurdo acontecido há algum tempo: Um cadáver estirado no calçadão de Copacabana e turistas tirando fotos com ele. Quase ninguém mais se lembra disso: "Estamos imersos nisso que está acontecendo. Estamos nos acostumando". 
Realista Ágatha. Anderson não era o alvo, mas morreu com cinco tiros: Bala perdida, no Rio de Janeiro, tem endereço certo. A morte do homem, pai amoroso, amigo sincero, não pode ser esquecida. Anderson saiu das sombras: por algum tempo, 15 minutos, saiu da invisibilidade.
RESISTIR PARA EXISTIR / EXISTIR PARA RESISTIR - Ágatha. Palavras de ordem muito bonitas. Torná-las viáveis é outra coisa. Duas Mulheres: uma morreu de fato; outra, de direito.

Compartilhar: