FOME
(Professor Luiz Cláudio Jubilato)
A sombra de chumbo assombra a cidade
o céu berrou; a linhas tortas riscaram o céu; clarão;
o céu despencou; catástrofe prenunciada
chuva, depois vento; vento, depois tempestade;
tempestade, depois tornado; tornado, depois furacão
furação; tempestade; enchente; imunda ação
fúria das águas, serpente vagando; boca de túnel;
igreja arrastada; o homem com a bíblia na mão, em oração
lojas, casas, oficinas, postos de gasolina, asfalto, calçada, sarjeta
tudo vem misturado; embrulhado no sensacionalismo d'amanhã
a manchete virá; a história sesacional morte de um cão
homens de terra; estátuas de barro; mexem-se em câmera lenta
a cidade perdeu as guias, perdeu o asfalto; logo as formas
a agua tem raiva; a raiva vira fúria; arrasta gente, carros, casas
a água tem fome de vida; fome de bicho; fome de tudo
a enchente entrou por onde deu; abriu buraco onde havia parede
a enchente tinha mil bocas, mil línguas, mil tentáculos;
A sombra de chumbo apedreja a cidade
arromba telhados, fere carros, machuca gente
a nuvem despenca sobre a cidade; cai em turbilhão
a nuvem não tem dentes; tem gengiva; a gengiva chupa
arromba as bocas de lobo que cospem tampas
a enchente mata gente; é boia; jiboia
o céu trovejou; a natureza se vinga da destruindo a destruição
na beira do rio, rosna um motor; morre em seguida; a água traga
arrasado o ribeirão, sem margens, sem fundo, sem identidade
o ribeirão preto destruído; o ribeirão preto chupado; comido
com paz de lixo, homens recolhem as sobras
a natureza desconhece sustento, rugas, rumos; conhece homens
assombro; o ribeirão agoniza; as pessoas batem cabeça
o ribeirão virou rio; inunda ação; imunda ação; violenta vingança
a sombra, assombra; donos de cana; gente sem cama; sem lugar
a natureza tem gana; desconstrói a reconstrução