IGNORÂNCIA

IGNORÂNCIA

Na cidade do Vale do Mucuri, uma das regiões mais haitianas do país, o hospital, se é que se pode apelidar de hospital aquela construção de paredes descascadas, onde falta tudo, inclusive, medicamentos, homens de avental amarelado manchados de vermelho e roxo, impotentes para remediar dores corporais, já que as da alma estavam longe do seu alcance e brincavam de deuses: Quem tem as melhores possibilidades de ser salvo? Quem já caminha célere para a cidade dos pés juntos? Criança tem ainda uma vida para viver, salva-se. Velho já está jogando a prorrogação. Se der, salva-se. Se não der, esquece-se. 

José Maria Boa Morte, residente advindo de uma das mais conceituadas universidades do país, conversa com uma senhorinha esmirrada, enrugada, que carrega 40 anos nas costas, que parecem 60. A fome na roça é cruel. A moça velha carregava uma sombrinha tão desbotada quanto ela. De repente, solta um miado: "Seu dotchô, eu cheguei no barraco cum aquele negócio que o shor me deu, mais num sube o que fazê. O sor pode me mostrá de novo cumo é que a gente faiz?"

O doutor residente, do alto do seu diploma, enche o peito e solta sua voz de barítono: "Minha senhora, a senhora deve chegar a sua casa, pegar esta cápsula, retirar este invólucro e introduzir esta parte branca no seu ânus".

"Como dotchô? Continuu não enteno nada. Qui negócio é esse de cap, cap o quê? Esse tar di invoculu? E issu di anu? Nóis num aína tá em 2000 ou num tamu? O tô dotcha?

Espuma a voz de barítono a bordo de um perdigoto: "Minha senhora, é cápsula; invólucro e não invoculu. É ânus e não ano. A senhora não entendeu? É tão simples. Mais simples que isso não dá!"

A gente batalha, estuda, como um louco, para passar no vestibular e entrar numa faculdade de ponta. Rala que nem um doido dentro do curso para se formar e, depois de formado, ainda tem de passar por uma merda dessa por dois anos. Puta que o pariu. Tenho vontade de matar quem inventou essa merda. Deve ser doido ou nada para fazer. Encarar uma velha burra que sequer sabe usar um supositório, não dá. Uma coisa tão simples, que qualquer criança sabe usar!!! Dá vontade de meter o pé nessa merda e ir virar mecânico. Deve estar ganhando mais que um médico.

A velha, que miava, ganiu tal qual um vira-latas escorraçado: "Num siô. O sor fala língua de estrangeru. Num entendu coisa ninhuma. O sor é dotchô?" Fala suzinhu ou tá falano cumigu?"

Olhando para a enfermeira, o encardido barítono espumava já em rosa choque: "Enfermeira, explica para essa doida como se usa um suposiitório, porque o meu saco já encheu. Não aguento mais. Isso é coisa de maluco! Não saber usar um supositório?"

A enfermeira, já de saco cheio: "Por que o senhor não troca o medicamento?"

O avental roto, já todo molhado, já esbraveja em vermelho: "Porra nenhuma. Ou é supositório ou não é nada. Explica para essa velha ignorante como usar?"

A enfermeira demonstrando uma certa irritação: "Ela não vai usar, doutor? Muda o medicamento!"

Boa Morte, nada tinha de José e Maria: "Já disse: ou supositório ou nada. Não tem outro remédio".

A enfermeira encarou a velha, velha e, com aquela cara de enfermeira, de dois plantões seguidos, usou daquela didática, com olheiras, e suavidade de cantina: "Olha, a senhora arranca essa parte de cima. Aí fica essa coisa branca. Então a senhora fica de quatro e enfia isso fiuuuuu!"

O quê? O qui ú sor disse? A sombrinha rota virou arma rota. Subiu quem nem foguete e desceu que nem bomba arrancando caspa do cocuruto do residente rosa choque que, espantado, pulou como um saci. Em seguida correu, com os calcanhares batendo na bunda, enquanto a velha velha latia: "Por aí, nem meu marido entra seu fié da puta".

MORAL DA HISTÓRIA: "Ignorante é o que detém um conhecimento específico, contudo não tem o discernimento para usá-lo em favor dos desvalidos, porque não aprendeu o que a universidade não ensina".

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