LIVRO E MUNDO

LIVRO E MUNDO

 

Quem se mete a ler um livro, tome cuidado: livro é espada, pode furar; é faca, pode cortar; é veneno, pode matar; é catarro, pode sufocar; é comida, pode empanturrar; é fogo, pode queimar; é asa, leva a voar; é medo, leva a desesperar; é maquiagem, leva a fantasiar; é água, obriga a nadar; é caminho, obriga a trilhar.

Quem se mete a nadar em livros, não acorrente a imaginação: livros mataram o ideal, escancararam o real; definiram a moral; denunciaram o mal; viraram campo para o sagrado e também para o civilizado; estruturaram a tática, a prática, a gramática; condenaram a história; reconstituíram a memória.

Quem se mete a escrever livros, cuidado: tanto pode ser autor, escritor, criador, quanto sedutor, enganador, plagiador. O verbo LIVRAR significa libertar, soltar, desembaraçar, preservar. Toda essa concretude me fez cair das penas. Fiquei atarantado com esse choque de realidade. Atravessei um verso. Acabei atropelado por uma rima rica de Fernando Pessoa(s). Um sentido não literal para LIVRAR me assustou como uma bofetada. Livrar: "abastecer" ou "abastecer-se" de livros.

Os ditames da gramática jogaram na minha cara o significado de VERBO: "palavra que indica ação, fenômeno ou mudança de estado". Nunca, LIVRAR significou "abastecer-se de livros". Eu me predispus a não segui-los. Minha análise deliberada brigou contra esse tal insultante sentido literal. Dentro do meu discernimento, uma voz impiedosa bombardeava: verbo, nesse oceano de denotações, navega nas ondas das conotações. Livrar é engravidar de livros, sim.

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