A LÓGICA DO GATO E DO OCEANO

A LÓGICA DO GATO E DO OCEANO

 

Ela tinha gatos. Eles comiam da sua comida. Só por isso estavam lá. Tantos quantos a casa conseguira suportar. Eles defendiam, cada um, o seu pedaço. Não carregava forças para limpar a sujeira. Mau cheiro inversamente proporcional à delícia do roçar de pelos nos cambitos com jeito e espessura de bengala. Escarrapachavam-se no colo. Todo dia, a preguiça do verão. Tinha a leve impressão que já embalara gente assim.
Aquele cheiro de vinagre rançoso vinha da sua boca? Não escovava os dentes há tempos. Pra quê? O casaco de peles, que sobrara, acarinhava. Pelo de gato angorá. Amava-o. Nada mais amava. Virou gato. Gato enfiado em si. Gato. 
De repente, um fugia dali. Ela, então, sem saudade, afogava-se em si. Via a cara de ratazana do Capitão Gancho. Gostava dele, sempre angustiado. Logo, vinha Peter Pan, com cara de anjim barroco. Tinha medo dele. Sempre feliz. Emergia. Chupava o ar. Um bichano a lambia. Nada humano a lambia, beijava, abraçava há muito. Queria agarrar, beijar o capitão.
O mandão miava. Era a hora da inspeção. Passava em revista à tropa. Os soldados procuravam outro lugar. Ela corria para o seu: oceano. Adorava tubarões, aquela raiva só de olhar. Detestava golfinhos. Aquele eterno contentamento. Acordava presa nos seus oitenta e tantos anos, sem boia, esperança, nem alucinação. Como era delirante delirar sem lança perfume. Havia máscaras. Muitos corpos no carnaval. Era sempre verão.
Os bandidos atacavam pela porta. Arrebentariam a fechadura de novo. Não portava canhões. A última bala se foi, quando matou o primeiro. Seus soldados miavam em retirada. Era maquinista, mas a pegavam desprevenida os assaltantes do trem pagador. Roubavam o que queriam, rindo com cara do golfinho Peter Pan. Fugiam. O estrondo da portava gritava. Não sabiam do tesouro no fundo do poço. Já a torturaram. Resistiu. Defenderia suas joias à custa da sua vida. Prometera ao homem de máscara de Don Juan, ou do Zorro. Nem sabia mais. Nunca soubera. Ele nunca tirava a máscara. Só fazia promessas de amor. O mapa. Ela escondeu no baú. Arrancou o escafandro. Procurou o que nem sabia. Eles estavam cada vez mais perto.
Achou a tesoura. Suprema vingança. Nunca o pegariam. Encarquilhada, curvou os ossos sobre o baú. Rasgou cada pedaço daquela praga que arruinou tudo. Todos fugiram. Só a deixaram. Só com os gatos. As bengalas já cheias de cupins quebraram. Caiu. Manchou o chão. Despiu-se para o Capitão, os tubarões, os baiacus. Os bandidos só a acharam, muito tempo depois que o corpo decrépito apodreceu. Incomodou. Derreteram em lágrimas de crocodilo os mentirosos. Desidrataram verdadeiramente sobre o tesouro rasgado. Nunca o teriam.
Mas, o salva vidas, com roupa de carteiro, sabia emendar quinquilharias e limpar cocô de gato sobre tesouros. Encheu as burras com as notas. Piedoso? Negociou esmolas com os ladrões desesperados. Transubstanciação imediata. Ladrões de sangue viraram nada.

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