MACHADO CORTOU O RABO

MACHADO CORTOU O RABO

O texto abaixo faz parte de uma coletânea em que 35 autores ribeirãopretanos escreveram sobre o tema "Meu professor inesquecível". A obra foi editada para a Feira Do Livro. É a minha homenagem a todos os que se dignam a dividir seus conhecimentos, mesmo com os que acham que não precisam.

Professor, que é professor, precisa ser também educador. Educador, que é educador, precisa ser também provocador. Provocador, que é provocador, precisa ser também transgressor. O indivíduo precisa ser transformado para transformar. Precisa ser desafiado para desafiar. Transformar é quebrar os parâmetros existentes, portanto a sala de aula não pode e não deve ser o único espaço reservado ao aprendizado. É visceral extrapolá-lo, chegar às quadras, ao pátio, sair pelos portões, ganhar as ruas, as praças, os teatros, a própria casa... Educação é sinônimo de transgressão.
Alguns professores dão aula, e só; outros defendem suas teses de mestrado pelo resto de suas vidas, e só. Alguns ministram suas aulas perscrutando as paredes por medo de encarar seus alunos; outros encaram os alunos como se quisessem estrangulá-los, porque eles têm o semblante exato do ganha pão. No entanto, há os que querem mais, muito mais daquele sujeito indefinido, sentado na sua frente e dos indeterminados que não ostentam sequer um predicativo no fundo da sala. E ponto final.
No Colégio Estadual Sebastião Patrus de Souza, em Juiz de Fora havia uma professora que me dava a nítida impressão de não tolerar a ignorância alheia. Mal olhava seus alunos na cara e só respondia às suas perguntas se estivesse num daqueles dias de extremo bom humor, o que, não raro, acontecia somente uma vez por século. Oscilava entre a impaciência e a timidez. Quase sempre dizia: "Eu vim aqui para desasná-los". A revolta estampada na cara de todos que nos considerávamos asnos era visível. O engraçado é que não nos dignávamos a abrir um dicionário para entendermos a provocação.
A professora Glayds era uma mescla de muitos seres: ora olhava para as paredes, ora defendia suas teses bastante pessoais sobre literatura; ora nos desestabilizava levando-nos para o pátio; ora pegava no pulo os sujeitos determinados, como eu, irrequietos, piadistas de plantão, para confrontá-los com sua própria criação. Criadores e criatura, um descendo pela goela do outro. 
Foi ela que, para protesto geral, mandou minha sala ler "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Li o livro sem tesão. Imagine um morto narrando sua própria história? E pior, usando um vocabulário hermético para o meu entendimento. Um enredo repleto de frases ambíguas. Uma narrativa que me desafiava a todo momento, por casa das suas entrelinhas. Para nos tornar ainda mais revoltados, mandou-nos encenar a obra de acordo com a nossa visão. Era a crônica do desastre anunciado.
Eu lia cada página com a soberba dos tolos,
Eu lia cada página com a soberba dos tolos. Arrancava como se cometesse o crime perfeito e a jogava pela janela destruindo as pistas. Queria pular no pescoço de d. Glaygs para estrangulá-la. Como crimes perfeitos não existem, achei um sujeito determinado para me denunciar.
Quando ela teve ciência do meu crime, seus olhos me transpassaram como uma lança. Ali, na sua frente, estava, em preto e branco, o retrato bem acabado do asno envergonhado. Com um sorriso nos lábios e uma candura que eu jamais vira, explicou-me cada detalhe da obra e me fez, passo a passo, descobrir e amar Machado de Assis. Foi aí que, pela intervenção de uma educadora transgressora, o Machado cortou o rabo do asno.

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