NÃO SEI DANÇAR

NÃO SEI DANÇAR

Sempre fui um perna de pau. Nunca joguei bem futebol, porque nunca tive o gingado necessário para tal e nem nunca me arrisquei em passos de dança, pelo mesmo motivo. Algumas artes dependem do corpo e corpos bem treinados promovem espetáculos fantásticos. Vi Nureyev dançar, como Fred Astaire, Baryshnikov, Gene Kelly, Cid Charisse, Ana Botafogo.

                Um dos mais belos espetáculos que essas minhas fatigadas retinas presenciaram foi Santa Maria de Iquique, do Balé Stagium. Coreografia dramática, inspirada no massacre de 3.600 trabalhadores, em 1907, no Chile, mas, ao mesmo tempo, de uma sensualidade extasiante, sacralizada por uma música cortante que grudou em meus ouvidos e as imagens se aferraram de tal forma à minha mente que já se passaram mais de 20 anos e elas não se despregam de onde estão. Perfeita consubstanciação.

                Há bem menos tempo, assisti ao Velox, de Déborah Colker. Corpos suados, dependurados desafiando a gravidade. Braços, pernas, pescoços tornados plumas, como se não houvesse ossos, só cartilagens e músculos soltos no ar. E a sensualidade de membros retesados, harmonicamente entrelaçados, expressões extremas de força e abandono, como se a vida toda se concentrasse no instante infinito de um suspiro, de um olhar. A beleza das formas desafiando a crueza dos obstáculos.

                A arte de dançar amarra-se à de cantar. A voz suingada, o balanço do ritmo, a beleza do timbre e a emoção da interpretação. Cantar é colocar a voz em movimento. Ora um movimento leve e sensual como o da Bossa Nova; ora rasgado e dilacerado, como o do Blues; ora complexo e improvisado, como o do Jazz; ora gingado e cadenciado, como o do samba. Canto e dança são a face e o avesso do tecido, a cara e a coroa da moeda. A beleza de cantar atada à beleza de dançar. Como irmãos siameses, xifópagos.

                Quem não sabe dançar, torna o sublime patético. Quem aprende a dançar, sabe apenas o passo coreografado, marcado, pesado. A dança, sem o quê da espontaneidade, é movimento robótico, caótico, despótico. Os olhos não acompanham o êxtase, as mãos não sabem se vão ou se ficam, os pés tendem a partir cada um numa direção, o tronco e o quadril não se entendem sobre para onde seguir. O corpo desavisado, pouco treinado, é pássaro com a asa quebrada, cão sem pata, pavão sem calda, bela mulher com o dente da frente careado.

                Hoje, assisti a Blade Runner, obra-prima de Ridley Scott. Feito em maquetes, sem as acrobacias da computação gráfica, assemelha-se ao balé das formas em cuja trilha sonora os ritmos se misturam na harmonia das cores e das dores. Em nenhum momento, lembra Avatar, em que experimentamos a exata sensação de estar num parque de diversões diante de um teatro de marionetes. A beleza de cenários criados pela computação gráfica assemelha-se à das caras das atrizes sem expressão devido ao excesso de botox. Rostos esticados em cima de pescoços enrugados. É Frank Sinatra cantando ópera, Gregory Hines dançando salsa, Carlinhos de Jesus dando passos de balé, Ella Fitzgerald solfejando funk.

                Como eu não sei dançar, não danço. Se o fizesse, pareceria tão artificial quanto uma flor de plástico; tão estupidamente tosco, quanto uma piada num velório; tão ridiculamente idiota, quanto uma resposta inadequada para uma pergunta inteligente. Assim, hoje, é a vida retratada na cena de uma tevê de alta definição. A sombra não acompanha a posição do sol, as cores da natureza não se adequam à hora do dia, os cabelos não balançam ao sabor do vento. O beijo não é de língua, apenas um roçar de beiços. O eu te amo parece decorado, declamado, tal qual sexo ensaiado. A sensação ruim é a de ter sido ludibriado, enganado, sensorialmente assaltado./Cmmd+V

Compartilhar: