O MEDO QUE NOS CONSOME

O MEDO QUE NOS CONSOME

(O Boca do Inferno – de dentro da boca dela)

 O medo é a praga que ataca a parreira, contamina a seiva e corrói minuto a minuto a raiz, até que a árvore perca a força, fique oca e caia de velha. O medo cultiva a morte, torna podres os corpos, os pés não de sustentam sobre sustos e sucatas de emoções. O medo é um rato, vem sorrateiro, rastejando-se célere para fora do tronco.  

O medo é traça, planta-se no corpo na vítima devagar, nos olhos devagar, na boca devagar, na cabeça de vagar e vaga pelas interjeições, os adjetivos, pontos e reticências, as mãos suando frio. Febre. O coração na garganta. Desespero.

O medo é a serpente com olhar de topázio, que atrai a vítima de forma brutal: sua boca de vampiro, com garras estourando as gengivas. Seu veneno cria dor na alma, torpor no corpo, pressão nas veias, ilusões na mente, fantasmas na cara dos olhos, estrangula nossos corpos e sonhos. Seu rabo de chocalho nos avisa do bote inevitável, da morte inevitável.

O medo se nutre da indefinição de quem é o inimigo, o inimigo nas esquinas, nas sombras, no preconceito. O inimigo está à espreita em qualquer lugar, a qualquer hora, com sua força de leão e rugido de bomba. A fúria do dedo e do cano escarram a morte. O medo rasga a carne, expõe as vísceras, faz a autópsia ainda viva das nossas posses e das nossas ambições. O medo da pobre faz do homem reles sabujo.

Quantos e tantos indivíduos viram o sangue se esvair por culpa de uma bala perdida com endereço certo? E quantos morreram por culpa da fuga para a direção errada? Quantos sugadores e devoradores não fazem alianças para se alimentarem das inseguranças dos prevenidos, segurando suas vidas dentro de seus celulares? Quantos não morreram correndo das possibilidades de levar um tiro nas costas, segurando suas pistolas, como se segurassem a coragem que se esvai.

Os ricos não têm medo e sim medos: medo da cadeia, medo da exposição das suas falcatruas, medo de não chegarem a lugar algum. O capital roubado dos tolos dos quais se alimentam os leva às igrejas, acordo com Deus para não para o mesmo inferno de quem usurpam. Todos os poderosos têm esqueletos dentro do armário e, pior, eles falam, às vezes berram. E nós? Também temos os nossos? Claro, só que os nossos sussurram, às vezes roucos às vezes gagos.

O medo não é maniqueísta: o bem em um pugilato contra o mal. A fascista maldade incentiva a luta, tanto quanto a fé cega, cria a acomodação. O mal é dialético. A maioria das artes foram criadas por seres que tinham medo: ou de perder a pessoa amada, ou a possível lucidez ou a capacidade de sobreviver aos exemplos. O poeta escreve com medo sobre o medo; o artista das cores pinta o medo; o músico canta o medo o cinema traduz o medo.

Vivemos na civilização do medo. Medo de nos doarmos... nos entregarmos... nos descobrirmos... nos querermos... amar sem barreiras... sermos espontâneos... podermos sair de casa sem colocarmos cadeados nas bolsas, nas portas, na coleira do cachorro. Medo de sermos dispensados pelo patrão ou pela pessoa amada...de nos tornarmos insignificantes...de nos tornarmos monstruosos... de não sermos nada.

A cidade tem esquinas e pontos de ônibus. O bandido está à espreita à meia-noite, ao meio-dia. Na rua com cheiro de mijo ou na avenida com bafo de escapamento. Todo mundo tem medo de que o mundo acabe, todo mundo diz que ninguém faz nada, mas também não faz nada, passa a vida em súplica. O bandido tem medo de que os políticos cumpram suas promessas: pobre não rouba de pobre, miséria não se divide para dois.

 

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