O RIDÍCULO DA CRASE

O RIDÍCULO DA CRASE

(O BOCA DO INFERNO – DIRETO DA UTI DA SANTA CRASE )

No hospital Pleonasmo, superlotado, os médicos brincavam de deuses: Nesta maca, deixa morrer. Já viveu muito. Nesta, deixa viver, viveu muito pouco. Esse? Deixa viver, tem que sustentar os cinco filhos. Esse aqui é novo, mas vive morrendo, então deixa morrer. Se viver, deixa viver. Ambiguidades da vida.

Gritaram no corredor: “Deu à luz”. “Um choro arrebentou o ar”. Dois enfermeiros correram com tomadas nas mãos e outro puxando o cabo de energia. O administrador do hospital berrou: “Luz?! Corre rápido que luz tá cara demais”. O centro cirúrgico é prioridade, lá tá sem luz há uns 10 dias”. O médico, então, se virou e gritou: “É com crase”. Todo mundo parou assustado. Um segurança, cheio de segurança, perguntou: “Com quem?”. O doutor, que nunca fez doutorado, tentou explicar, mas foi interrompido por uma voz infantiloide: ”Que raios de doença é essa, que nunca ouvi falar?”. O doutor, que não fez doutorado, mas tinha juízo, tentou explicar, contudo ninguém ouvia ninguém. Todo mundo começou a correr, a trombar, a passar um por cima do outro, aos berros. Um doente foi arrancado da maca com soro e tudo. Maca foi empurrada pra fora do hospital. A roda de uma maca engastalhou na roda da outra. Foram pro chão paciente, intubação, cateter e tudo. Saíram do laboratório uns homens vestidos de astronautas: “Vai que essa tal de crase é contagiosa!!!”.

O doutor ria tanto que não conseguia parar. Começou a tossir. Colocou a mão no peito. O braço ficou bambo. A perna direita cedeu. A boca entortou. A língua engrossou. Despencou como um saco de batatas. Tentaram levantá-lo. Era difícil. Ele estava muito acima do peso. Gordo mesmo. A pança carregava fácil umas duas latas de banha de 20 quilos. O avental estava tão esticado, que o umbigo parecia que ia pular pra fora da camisa. Balbuciou: crase.

Era a tal da crase. Certeza. Só podia ser. Todo mundo se afastou, como se estivesse se afastando de alguém armado no meio de uma briga. Alguém se deu conta de que a doença poderia ser contagiosa mesmo. O doutor foi a primeira vítima. Ficou o doutor estrebuchando no chão. Todo mundo correu para as garrafinhas de álcool gel. Todos esfregaram álcool nas mãos, na cara, no pescoço, tomaram um verdadeiro banho de álcool.

Um amalucado se empolgou. Ficou com medo de já estar contaminado e bebeu o álcool. Bebeu tanto que se “estabacou” no chão. “Mais um contaminado”: gritou uma senhora grávida. Senhora, não porque tivesse idade avançada e sim porque era casada. E casada com o barriga de chope ao seu lado, que parecia grávido de gêmeos. Uma outra senhora com uma cara assustada. E um livro debaixo do braço estacou. Dava para ver que era uma gramática. Disse de si para si: Essa tal de crase mata mesmo, Jesus!!! E agora?

O sujeito “mamado” tentou se levantar. Falava com língua gorda. Não deu outra: vomitou. Estava com a pança vazia e o estômago oco desde as cinco da manhã esperando consulta. Vomitou um troço amarelo. Ouviu-se um “óóó...”. E todo mundo se afastou. Os corredores foram ficando vazios. Mais um...

O repórter setorista, para mostrar que o seu salário mérdico ainda valia alguma coisa, descreveu os sintomas da doença em tom catastrófico. Gravou uma entrevista com as pessoas que fugiam do hospital apavoradas com a crase. O problema era contaminar outras pessoas. A mulher dava livrada nas outras para poder passar. Livro é instrumento de guerra.

Doença com nome esquisito. Chamaram os pesquisadores da USP para opinar. Alegaram que faltavam dados para identificar a doença, mas o nome não era de todo esquisito. Já tinham ouvido falar na tal da crase.

Enquanto corria a última entrevista, uma senhora, esta sim, era senhora porque somava 84 anos abaixo da linha da pobreza, desmaiou. Caiu com cara no chão. Babava. Chamaram a maca. Um dos maqueiros chamou uma ambulância, o hospital estava lotado. O administrador decretou quarentena, até que o vírus da crase fosse identificado e os pacientes tratados. O repórter, já mascarado, documentou o passamento da velha em tom alarmante. Constatou que a misteriosa doença se espalhava pela cidade. Seu poder de contaminação era avassalador.

Sabendo da epidemia de crase, um candidato à presidência se apressou. Prometeu que faria todos os reforços para importar vacinas para impedir o alastramento da doença. Alguns dias depois, sem apresentar sintomas mais graves, várias pessoas receberam alta ainda com medo.

O sintoma mais grave: a doença atacava o cérebro. As pessoas não conseguiam nem falar nem escrever. O doutor estrebuchado era a prova quase viva disso. Há outros menos graves: o vômito só dava nas mais jovens, que ingeriam álcool com o estômago. Em pessoas mais idosas, provocava desmaios e até morte, principalmente as abaixo da linha da pobreza. Alertava-se que poderia haver tombos e qualquer pessoa bater com a cara no chão.

Com o tempo, a crase foi esquecida. O problema foi se espalhando, era comum errar o diagnóstico, principalmente se houvesse ambiguidade.

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