A ORDEM NATURAL DAS COISAS

A ORDEM NATURAL DAS COISAS

Publico essa crônica em homenagem aos os meus sempre alunos Raulo e Felipe.

A sinfonia solitária. A mãe ao lado da cova. A dor maior. Corta. Dilacera. Espezinha. Machuca. Cresce. Sufoca. Incapacita. Uma mulher e sua cria. Sua pele, seu jeito, sua sequência, sua ascendência. Sua extensão, seus sentidos, sua expressão. Uma mulher na sua sinfonia solitária em dor maior. Atroz, feroz. Pais jamais deveriam enterrar suas crias. Foge à ordem natural das coisas. Não é a lógica da existência, a inexistência de quem deveria continuar.
A morte de um filho não é como amputar um braço ou ter uma perna arrancada. O cérebro se acostuma à ausência dos pedaços do corpo. É fácil assim. Simples assim. Age como se eles ainda estivessem ali. O dedo ainda coça. As juntas ainda doem. É um não estar estando. Um filho é diferente. As fotos não têm o calor do corpo. Os filmes não trazem o prazer das lágrimas. O cérebro se acostuma. O coração não. Perder um filho é como amputar a alma. 
Saudade. Palavra doída. Vazio preenchido de lembranças. É o corpo que não se pode tocar. É o rosto que não se pode acariciar. É o gesto que não se pode entender. É a dúvida que não se tem mais como esclarecer. É o não tocar algo presente, mas ausente. É o sentir o cheiro sem a pessoa estar. É o vazio sufocante: Que espera pelas palavras que nunca serão ditas – pelas brigas que nunca ocorrerão. Pelas mãos que nunca poderão acariciar. Pelas palavras vivas que nunca serão ditas. É o vazio dilacerante. Sem toques, sem trocas. Sem calor, sem amor.
Filhos nunca morrem, mudam de substância. Emergem, quando menos nos damos conta, de uma música, de um tênis, de uma camisa, de um momento, de um sorriso, de uma lembrança... Lembrança cortante, doída, sofrida. Adubo das sensações, das emoções, dos medos, dos desejos, do dito e do não dito. Nasce parasitando um pensamento, um sonho, uma fantasia, uma necessidade, uma divagação. Habita uma caverna de onde só sai quando estamos comovidos, frágeis, vulneráveis, divididos. Quando só sabemos conjugar o verbo apartar. Quando descobrimos amar aquele ser engraçado, emburrado, caricato, onipotente. 
A enxada rasga a terra. Extensão dos seus braços. Um último olhar. Vai-se a extensão dos traços. O caixão agora acolhido pela mãe terra: Que é fria. Que não acaricia. Não mima, não entende, não sofre, não chora, não se angustia, não participa, não troca. Toma. Engole. Leva. Um jovem jamais deveria enterrar outro jovem. Por mais belos que sejam, a morte é feia. Ausência de vida, na época em que se sorve a vida em goles sôfregos. Em que o tempo nunca é suficiente para engolir todas as sensações, todas as emoções.
A morte de um jovem mata o seu sentimento de onipotência em todos os outros. Descobrem a impotência de não ter como driblar. Da forma mais cruel, descobrem-se vulneráveis. Aprendem que isso pode acontecer com eles, até então tão inconsequentes passageiros da vida. Tornam-se vulneráveis. A morte lhes tira a ousadia, destrói-lhes a autoestima, por isso buscam a felicidade em qualquer coisa que os faça fugir, para não lembrar.
Quando um velho morre, cumpriu-se um ciclo. Os filhos sofrem. Mas, a lógica da vida estabelece a compensação. Quando um jovem morre, a sensação é de interrupção. De aborto. De extirpação. De falta de significação. A pergunta que machuca é: por quê? Ele ainda não teve tempo para pecar. Esses pecados comezinhos do dia a dia. Não teve tempo de estudar. Esse estudo das trocas bocas e corpos com as pessoas. Não teve tempo para amar. Esse amor de descobertas e entregas para sempre até o próximo amor. Ainda não aprendeu a ganhar, porque não sabe perder. Ainda nem viveu. Essa vida de cada esquina. De porres e de carícias. De cada fracasso. De cada relacionamento. De cada vitória.
Não há solidão maior que desfazer o quarto desarrumado de um filho morto. Não há desespero maior que sentir seu cheiro, sem ele estar ali. Não há dilaceração maior do que esperar por alguém que jamais vai voltar. É a metade arrancada. É o todo quebrado. É o coração trincado, sangrando sem ninguém para salvar. É o pedaço mais vital que se levou. É a pele. A respiração. O sangue. A seiva. A água. O ar. É a essência. É o calar. Ainda que ele esteja impregnado em tudo. Nos móveis, nos cadarços, nos facebooks da vida, nas caras dos amigos, nas frases que eram só dele, no olhar que não é igual ao de ninguém. É quando, apesar de contra todos e contra tudo, a vida resolve abortar a ordem natural das coisas.

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