RIBEIRÃO SUI GENERIS PRETO

RIBEIRÃO SUI GENERIS PRETO

            Estaco cara a cara com o sinal fechado, na esquina da rua Lafayete, com a avenida Independência (de quem?).

            O homem desempregado, com cara de “piedade, irmão”, quase bate sua caixinha de balas na minha sombra. Quer me empurrar suas balas “me salve, irmão” pela janela do carro. Na verdade, quer um paliativo para a dor de não vender nem a si mesmo. Do outro lado da rua, há uma placa, em vermelho gritante: VENDE-SE.

            O homem desempregado manca na tentativa de usar a força do corpo sem forças contra o vidro do carro. Quer me vender bugigangas, que não servem para nada, a não ser para o próprio sustento. Mal sabe falar. Sua cara define "ninguém se solidariza com os vagabundos (?) e você não é meu irmão". Seu dinheiro pode ser o meu sustento. Só isso. Do outro lado da rua, outra placa berra: ALUGA-SE.

            O homem do circo espirra fogo, come fogo, depois cospe no chão. Sai por entre os carros exigindo cachê para quem nunca pediu para ver o show. Xinga: “Sou um artista”. E quem liga para isso? Não percebeu ainda que essa essa cidade é um circo. Uma cidade de malabaristas, onde há alpinistas, arrivistas e até artistas, mas em busca dos holofotes para o próprio show.

            O verde, até que enfim, aparece pendurado no mastro torto, castigado pela chuva do ano passado. A bola verde denuncia, mal e parcamente, a esperança de cruzar a ponte que separa a incompetência da impotência.

            O carro da frente tem pressa. Acelera. A realidade dos fatos o breca. Os pneus cantam. O freio idem.

            Impávidos, a Hillux, o Camaro, o Mini-Cooper, o Smart, o Mercedes atravessam o sinal, que supostamente libertava os iludidos, como na parada cívica da Independência (de quem? de quê?). Os milhões atrás do volante criam as leis. Não há sinal fechado para eles. O vermelho é mera convenção.

            Finalmente, o motorista arranca. A rua, queijo suíço podre. Danço a dança de bêbado querendo, sem querer, chegar a casa. A placa previne: buraco. Será que o prodigioso ser que a colocou me acha um completo imbecil? Estamos sim, mas não dentro desse tipo de buraco, de um buraco acusado injustamente de metafórico.  

            Nunca sei se ela, aquela coisa no meio da rua, me previne da indesejável presença dele ou o nomeia para que eu não o confunda com uma valeta. Ao buraco, você xinga. À valeta, curiosamente, você se acostuma. A gente se acostuma a se acostumar. Ele aparece do nada. Ela não. Ela sempre esteve, está e estará lá, cumprindo a missão de quebrar nossas suspensões.

            Inevitável como a morte, fico sem saída, o carro detrás me empurra para o cruzamento com a Avenida Francisco Junqueira, onde motoristas jogam o curioso jogo de xadrez do “vou não vou". Quase todos os dias, algum impaciente vai. Outro vem. A pressa de um arranca a vida do outro. A vida tem pressa. Agarrar alguma oportunidade, também. 

O verde e o amarelo não existem pra ninguém. O vermelho, sim. Pelo menos, uma vez por semana, diz o frentista de costas para os carros que passam. Passo apertado num corredor entre o corredor entregador de pizzas (8 reais por entrega) e o vagaroso Food Truck (25 reais por um sanduíche gourmet). Um tem patrões. O outro tem padrões.

            Suprema ironia: um acidente, carros despedaçados, pessoas mortas, vísceras à mostra. Ao lado, o bar do Epicurista. Epicuro, o deus da gastronomia, faria que prato com esses ingredientes? Ninguém pode se espantar, todo o mundo cozinha a morte.

            Suprema ironia: a Avenida Getúlio Vargas (homenagem de Rieirão Preto ao fiador da luta para oprimir São Paulo) corta a Nove de Julho (homenagem à luta para libertar São Paulo). A GetúlioVargas, asfaltada, tem pressa, começa apertada, dá uma volta, atravessa a Nove de Julho, depois se expande. A Nove de Julho começa confusa, calçada, caminha a passos lentos, depois de cortar a Presidente Vargas, vira asfalto. O trânsito tem pressa, pressa que acaba em afobação, afobação que, como na revolução, acaba numa encruzilhada.

            Suprema ironia: a Getúlio Vargas divide a “Califórnia brasileira” em duas partes. Se você virar "à direita", na João Fiúza, vai em direção à CALIFÓRNIA; se virar, à esquerda, fatalmente cairá na “brasileira”, a Caramuru.

            Suprema ironia: João Fiúsa, que dá nome à avenida dos abastados, que sempre tomam o caminho da direita, morrerá em Bomfim. João Fiúza nunca esteve em Ribeirão Preto. Chegou ao bom fim na sua cidade natal.

            Ribeirão é a suprema ironia a céu aberto.  

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