Será que seremos um remédio contra a burrice?

Será que seremos um remédio contra a burrice?

                Nada me indigna mais que censura. Apanhar na boca me indigna. Proibir me indigna. Impor limites às crianças me indigna. A atitude imbecil de um censor me indigna. Quem proíbe, gosta de ser enganado – Como nossos pais, diria Belchior. Quem um censor pensa(?) que é? Um ser iluminado? Que pode decidir sobre o que eu devo ler, ver, falar, avaliar, ouvir e pensar? A censura e o censor são certamente os maiores incrementos à burrice da história, depois vêm provas as sobre livros e a criação de um programa do Ministério da Justiça e Segurança Pública de usar a literatura como instrumento de tortura. O detento reduz a pena em quatro dias, se ler um livro. Genial. O plano mesmo é desafogar o sistema penitenciário. Genial. As obras mais escolhidas foram “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago” e “Crime e Castigo” de Dostoiévski. Detentos intelectuais, preparados para o mercado. Genial.

 

A história está cheia de iluminados guardiões da moral e dos bons costumes (seja lá o que isso signifique). São escudeiros de caudilhos que arrastam multidões, berrando verdades absolutas e se escondendo atrás do moralismo. Assim salvarão o mundo da ameaçadora livre manifestação dos direitos democráticos. O estado é laico, o censor não. É nada mais, nada menos que um idiota útil, descartável como papel higiênico, afinal não entende nada de coisa nenhuma. Se entendesse, não seria censor.

                E a multidão acéfala engole faike na forma de sabedoria. Direita ou esquerda são partes do mesmo corpo, uma lava a outra. Ah! Desculpe-me. A Revolução Francesa já acabou faz tempo, leitor? A rotulagem é a melhor maneira de desqualificar o adversário, de se mostrar importante, de dizer que defende a família (qual família?). A juventude hitlerista começou a ser ajustada assim, quando o professor se viu amordaçado, escolas públicas viraram campos militares, alunos passaram a usar farda e bater continência, convenceu pais a abdicarem deles. Ninguém vestia azul, nem rosa.

                George Orwell vislumbrou essa distopia: o estado opressor-policialesco; “sorria, você está sendo filmado”, as coisas mudam para ficarem iguais. Isabella Allende presenciou a distopia: tortura a céu aberto em estádio de futebol e morte por crimideia. Em uma ditadura, ninguém é inocente, nem que as apoia. A mentira é arma; a censura canaliza o óbvio, transmutando-o. Pais espancam filhos discordantes, filhos entregam pais vacilantes, vizinhos passam a ter comportamentos cambaleantes. O país precisa de uma guerra externa para disfarçar a miséria interna. Falta apenas desancar a velha Constituição, criando uma nova e “revolucionária” (A Polaca de Getúlio Vargas), estrangular as relações de trabalho (A carta dell lavoro de Mussolini), tornar a fé destemperada um apanágio à burrice (Os Index da contra-reforma) e promover a queima inquisitorial de livros, para recontar a história com um novo viés (Stalin e outros ditadores bananeiros da América Latrina). Estamos a caminho célere para nos encarcerarmos em um admirável pesadelo novo: vidas secas e angústias nos esperam, junto com os cassetetes e os porões.

                Agora vivemos uma espécie de cegueira verde-amarela escarnecendo da cegueira total: uns poucos se manifestam, muitos viram massa de manobra, indo a passeatas para beber e ver o show. Meu amigo, o poder serve a alguém, não a você. Você já se perguntou a quem? Ninguém nasce usando um terno Armani, mas todo mundo aprende a usá-lo junto com a maior das pragas dessa América Latrina: o populismo. O servilhismo, o ufanismo, o caudilhismo, o corporativismo e o nepotismo são os irmãos siameses dessa praga. Em nome de uma religião se fratura uma Constituição. Em nome de uma Constituição, institui-se a manipulação do pensamento. Por que será que, quando os alemães invadiram os países da Europa, correram atrás das obras de arte que tanto condenaram?

                Conta a lenda que Pablo Picasso estava de frente para Guernica, quando um soldado o interpelou: Foi o senhor fez isso? Ele teria respondido: Não, foram vocês. Por que a Luftwaffe destruiu uma cidadezinha sem equipamento antiaéreo? Resposta simples: “para matar ideias”. Disse o poeta que nenhuma bala pode matar uma ideia. A censura, pior que bala, pode. Pode disseminar o Alzheimer coletivo.  Estaremos em duas prisões: não saberemos o que está fora de nós, nem saberemos quem somos de nós. Seremos nós. Viveremos noz. Basta verificar: a leitura virou instrumento de tortura, elas são indomáveis. Estamos ficando monossilábicos. Quem não reconhece a textura e as plumagens das palavras, não sabe explicar o que é e quem é. Isso interessa a alguém? Você já se perguntou a quem?

                Adiantou censurar O Crime do Padre Amaro? Ridicularizar a Impressão do Sol Nascente de Monet? Vaiar o Bolero de Ravel? Queimar os livros de Monteiro Lobato? Felizmente, o sol nasce todos os dias. Essas obras renascem todos os dias, apesar de atitudes idiotas como a de impedir o Queermuseu: pensava eu que tínhamos saído do século XIX. Agora censuram filmes, peças teatrais e toda forma de livre expressão, em nome da família (qual família?). Muitos censores constituíram mais de uma. Para essas também vale a regra geral.

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