VIROU UM PÉ NO SACO

VIROU UM PÉ NO SACO


(CARA NA CARA DA TEVÊ EM MAIS UM DIA INFERNAL)

Meus amigos, 
Nada contra quem gosta; nada contra quem sai à caça, mas, se por motivos óbvios, não dá mais para assistir à tevê aberta, acumulam-se outros tantos que me fazem bater em retirada dos canais fechados.
Passo para um canal: um possuído mudou de vida depois de lutar bravamente contra o demônio que o levava a consumir álcool, drogas ilícitas, para que conseguisse suportar a droga da vida chata. Agora, com seu exército bíblico, luta para expulsar os demônios de outros possuídos, usando sua voz de político em final de campanha tentando convencer eleitores incautos das obras que prometeu fazer, mas não fez. A repórter, com voz de caixão, pespega-lhe o microfone nas fuças e as lágrimas, antes domadas a respirações quase convulsivas, esguicham como bisnagas apertadas em baile de carnaval (baixou-me um espírito de Emilinha Borba ou Marlene ou Carmem Miranda ou Noel Rosa ou coisa assim).
Passo para outro: um sujeito bigodudo chama o rapaz na cadeira de rodas para contar a história de como foi atropelado por um motorista bêbado, perdeu os movimentos das pernas, mas, pelo menos, consegue comer sozinho (entenda-se: "sozinho" aqui quer dizer, sem a ajuda de outrem mesmo). A cadeira foi construída com a ajuda dos vizinhos e a fuga das autoridades. O apresentador faz um discurso contra as autoridades e, em seguida, mostra o vídeo de um deputado que "não quer aparecer", exibindo a cadeira que doará ao rapaz " ao rapaz. (Que fique claro, é apenas solidariedade).O apresentador vai às lágrimas para agradecer "ao cara", a plateia ensaiada, também. A câmera foca. Lágrimas Um dia desses vão soltar uma bomba de gás lacrimogêneo na plateia, só para obrigar todo mundo a chorar. Histórias de motoristas bêbados dão dez programas de tevê por semana, no mínimo. A maioria relatada por um apresentador "vermelho", "enternado" (porta um terno amarfanhado, muito maior que suas medidas permitem) de olho na aferição do IBOPE (observem como é um olho no gato, outro na sardinha; um na câmera, outro na parte baixa do vídeo). Os motoristas bêbados, agora sãos, indignam-se, batem na mesa, depois, levantam-se. Para afogar a indignação, saem pra beber.
Passo para outro: uma senhora de sorriso largo e piadas sofríveis conta a maravilhosa história de um pai que criou sozinho (entenda-se: "sozinho", nesse caso, significa com a ajuda de outrem, mesmo que esse outrem não esteja presente para receber os aplausos efusivos que a regra da claque manda) duas filhas, depois da morte da esposa. De fato: um herói. Prantos. Frases carregadas do óbvio ululante. Prantos. Os presentes, no sofá, enchem o peito, seguram o nó na garganta e despejam o óbvio, com a óbvia autoridade de um sociólogo da Sorbone. Aplausos. Prantos. Por que mulheres que suportam maridos beberrões ou filhos drogados ou cunhados espaçosos ou trabalham dioturnamente não são chamadas de heroínas? Alguém suspira: sociedade machista. Raiva. Dedos em riste.Prantos.
Passo para outro: antes de o jogo começar, o repórter, com pinta de galã de novela mexicana, chama o garoto que não possui as duas pernas, coloca-o no gol para que ele mostre como é defender um pênalti mal batido sem as duas pernas. Logicamente, ele defende. Ovação (entenda-se: aplausos e urros). O ídolo assina a camisa, faz um sorriso amarelo (aquele dos 7x1) e se vai soltando beijinhos para a plateia. Ovação. O garoto espera o fim do jogo. Jogo tão ruim que, na saída para o vestiário, os atletas mereceram uma ovação (entenda-se: agora o ovo empresta sua rotunda forma à palavra). O garoto sem pernas foi, realmente, a única atração. Ovação (sem o ovo).
Sábado e Domingo são os piores dias da semana para esse tipo de apelação. Um circo de horrores. Histórias de superação são importantes instrumentos de motivação, mas não na dose cavalar com que são aplicadas. No vale tudo para alavancar a audiência, a miséria humana tem lugar de honra, passou a ser explorada de tal forma que já podemos falar em "estética da choradeira da auto superação". A fórmula é facilmente perceptivel. Ligue a qualquer hora, em qualquer canal.
Nem livro de autoajuda chega a ser tão medíocre.

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