AUSCULTANDO A SOCIEDADE: VIVER, MORRER OU VEGETAR.

AUSCULTANDO A SOCIEDADE: VIVER, MORRER OU VEGETAR.

              Interessante como determinadas notícias chocam o público. Ainda que as mesmas devessem ser totalmente previsíveis e em nada supreendentes. Entretanto, talvez pareçam ser novidades impactantes em função de duas características comuns de parte de dois “tipos” de públicos:  o que as criam e o que as recebem. Ambas as partes têm como traços típicos sonolência filosófica e hipocrisia. Partes que de tanto desejarem, gananciosamente, um algo se esquecem de perceberem a si mesmas, principalmente, de seus (im)potenciais sensos de coerência e consequência. São ineficientes na percepção de pura relação causa-efeito. No dia 23 de agosto de 2015 mais uma dessas “notícias novas chocantes” foi dada por canal de massa do Brasil. Curioso, na medida em que uma das principais e verdadeiras causas do problema exposto, pela notícia em questão, também é oriunda de mentalidade mais alienada de massa. Apropriado, não??? “Cursos de medicina sem estrutura crescem e chegam a custar R$ 11 mil reais”. Para quem tem a mínima competência de observação - pois, nem é preciso qualquer pesquisa científica oficial para confirmar algumas conclusões - o resultado prático da mentalidade dominante sobre profissões - principalmente a medicina - não poderia ser outro.

            Já dizia, há muito, Dr. Bezerra de Menezes, sobre o exercício médico (em seu caso, iniciado em meados de 1856): “O que não atende por estar com visitas, por ter trabalhado muito e achar-se fatigado, ou por ser alta noite, mau o caminho ou tempo, ficar longe, ou no morro; o que sobretudo pede um carro a quem não tem como pagar a receita, ou diz a quem chora à porta que procure outro – esse não é médico, é negociante de medicina, que trabalha para recolher capital e juros os gastos da formatura.” Ok!!! Talvez você, leitor, esteja indignado com minha citação sobre Dr. Bezerra, alegando ser esse um exemplo extremo - provavelmente pelo grau evolutivo de tal personagem histórico. Ou, indignado também em função da enorme oposição, existente entre a fala do Dr. Bezerra e o que se considera prioridade no contexto atual, no qual, afinal, todos precisam e têm o direito do sustento digno. Até porque, diriam muitos, o bondoso médico, na ocasião de seu desencarne, se encontrava prostrado ao seu leito, em condição de pobreza. Portanto, para esse texto não ser mal interpretado, é importante já esclarecer de que se trata, igualmente, de análise do extremo, contudo, do oposto. Oposto esse representado por profissionais os quais, desde a escolha da carreira médica, estão mal orientados. Mais preocupante é que esse extremo oposto, talvez, não esteja em tão ínfima quantidade quanto o extremo contrário representado pela figura do Dr. Bezerra. Vícios de pensamentos e atitudes, de âmbito social, alimentam as orientações distorcidas. A família que acha “bonito” - leia-se chic, glamouroso e prova de status - um ou mais médicos em suas fileiras. Os pais que só aceitam custear alguns anos de cursinho pré-vestibular se a carreira escolhida pelo(a) filho(a) for medicina, porque lhe trará garantia de vida. Familiares que têm como “argumento plausível”, para apresentar ao vestibulando, a certeza das pessoas passarem fome caso considerem outras profissões que não seja a medicina. Pessoas diversas, sejam ou não do círculo social do estudante pré-vestibular, que defendem, convictamente, que a medicina é um sacerdócio e que somente ela necessita de dedicação e estudos contínuos para sua execução, quase pondo outras profissões na inferioridade ou, até, inutilidade social. Etc, etc, etc que você, talvez, também já tenha ouvido... Enfim, são tantos mitos que envolvem a carreira médica que fica até óbvia e esperada a construção de mentiras descaradas. Por quê, então, não cogitar que tais mentiras tenham suas perpetuações, inclusive, no que diz respeito à formação profissional nos cursos de medicina oferecidos por algumas faculdades/ universidades pelo Brasil afora??? Se trata de ingenuidade humana ou de pura ganância cega de parte significativa da população. Ganância que estabelece tons de normalidade e aceitação às péssimas e deficitárias práticas profissionais que beiram à atentado à vida alheia. Ganância que, inclusive, perversamente, auxilia administrações, públicas ou privadas, incompetentes a prejudicarem o próprio trabalho do médico comprometido e consciente. Claro que perdas de vida na medicina fazem parte do cotidiano desses profissionais de saúde, pois, em seus esforços nobres e louváveis - tanto quanto de outros profissionais de saúde ou não -, são convidados, pela Existência, a perceber que não possuem superpoderes de salvação. Contudo, a sociedade acreditar na sua própria auto-enganação sobre haver tantas pessoas que apresentam habilidades naturais para a prática médica é um estímulo fundamental para que instituições ofereçam formação em medicina que estaria mais próxima de açougues, cemitérios e instituições financeiras. Só como dado que pode se tornar complementar para a reflexão proposta em geral, existe um desequilíbrio considerável na escolha, pelos graduados em medicina, entre as especialidades médicas. Embora, segundo o site do CFM (dados de 2013), as especialidades básicas sejam as mais escolhidas por jovens profissionais médicos no Brasil - o que “fragiliza” a idéia da busca por maior rentabilidade e trabalho “mais leve” - o mesmo texto contido no site reafirma que a relação candidato/vaga nas residências mais rentáveis é sensivelmente maior. O que ser pensado afinal???

             “Exercer a medicina em áreas remotas e com salários pouco atrativos não será a primeira opção profissional desses médicos recém formados”. Essa é a constatação feita por Bráulio Luna Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Ok... Para um homem que levou seu lado caridoso à níveis elevadíssimos - a ponto de ter experimentado o altruísmo em seu estado mais puro, compreensivelmente e constantemente, não acessível à esmagadora maioria da população -, a vida médica do Dr. Bezerra de Menezes pode ser considerada utópica para padrões profissionais, em geral, de quaisquer períodos históricos. Entretanto, tendo nos ouvidos e mente tantas argumentações populares perniciosas e, portanto, a médio e longo prazo, traiçoeiras e irônicas sobre a medicina, as palavras de Dr. Bezerra de Menezes são atuais, factuais e proféticas. No final, 11 mil reais mensais, possivelmente, seja preço muito barato frente aos estragos que são feitos em inúmeras vidas, sejam a dos pacientes mal atendidos, como também, de médicos mal decididos, instruídos e resolvidos.   

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