REDAÇÃO PARA TODA VIDA.

REDAÇÃO PARA TODA VIDA.

       Na ciência psicológica cunhou-se o termo “auto-sabotagem”. Por uma explicação breve, pode-se entendê-lo como um comportamento repetitivo, prejudicial e, geralmente, inconsciente, executado por um indivíduo. Inconsciente pois se torna, ainda que com consequências nefastas, automatizado. Basicamente, um padrão comportamental não sujeito à questionamentos, mesmo que faça sangrar até a morte (inclusive, literalmente). A razão para a existência de tal absurdo e incoerência pode ser definida em uma expressão simples: descrença em si mesmo, no que se refere ao poder de transformação dos fatos e do ambiente no qual está inserido. Ou seja, ao longo de muito tempo, o indivíduo é levado a aceitar que nada diferente do que ele vive ou do que lhe foi apresentado - independentemente de sua funcionalidade e qualidade - seja possível, tenha validade e mereça qualquer crédito. Desse modo, esse indivíduo atravessa uma mísera existência, atrofiada em sonhos, realizações, comprometendo, quase definitivamente, felicidade e satisfação, pelo desenvolvimento e crescimento ante, pré e pós desafios. Conscientes disso, qual o dano quando a auto-sabotagem é praticada não por um indivíduo, mas, por uma sociedade inteira?

           A USP, reconhecida como uma das melhores universidades do mundo, tem em seu vestibular uma das razões para seu mérito, na medida em que o candidato à uma de suas vagas deve demonstrar significativa capacidade de ir além do que já está - ainda que, no futuro, já como profissional, possa decidir abdicar dessa capacidade. Claro, mesmo que seja desnecessário dizer, tal capacidade não é exclusiva de “uspianos” ou de integrantes de quaisquer outras universidades. O fato é que, nesse ano, em sua segunda fase, o tema de redação proposto pela FUVEST contém potencial para considerável reflexão e entendimento quanto ao processo de auto-sabotagem de uma nação inteira: “As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas”. Voilá!!! Em grego, utopia significa “lugar que não existe”. Não existe...Nunca existirá??? Caro(a) leitor(a)...Pense bem...Nesse instante, se você está lendo esse post em um computador - como o conhecemos hoje -, saiba que ele só tem, aproximadamente, 39 anos. Anterior a esse período, algo como o que está em sua mão era, no máximo, uma vaga ideia. No máximo, porque, provavelmente, para muitos, milhares, milhões, era algo impossível de ser pensado de modo plausível, sério. Uma dessas utopias da vida. Mas, exatamente por ser uma utopia, era, sem qualquer dúvida - veja de novo o que está em suas mãos - um caminho para o novo, para a revolução. E o computador é somente um ínfimo exemplo entre tantos outros. O que dizer sobre o telefone celular, carros que estacionam sozinhos, jogos com outras pessoas online, casas completamente automatizadas, televisões interativas, etc? Fatos do presente, antigas visões do futuro, realidades nascidas das utopias “insanas” de alguns. Se essas palavras fossem uma resposta para o tema de redação da FUVEST, há algumas letras já estaria claro que a utopia não é, apenas, indispensável. Ela é vida no sentido mais amplo, profundo, significativo e redentor da palavra. Ela, de forma “pura”, jamais é inútil ou nociva. Problemas relativos à inutilidade e prejuízos acontecem quando se faz, propositalmente e convenientemente, fusão entre utopia e hipocrisia. Ou seja, quando algo que ainda não existe é, supostamente, pensado e considerado de maneira falsa e dissimulada. Exemplos??? Entre outros, ligue a tv ou rádio, em quadriênios, e faça a comparação do primeiro ano com o último ano desse período. Verá, nitidamente, as consequências da fusão nociva de conceitos, anteriormente mencionada. A partir desse hábito desnecessário, como não ficar estabelecida a auto-sabotagem em dimensão social? O conceito eleitoral do “menos pior”, as condutas “pseudo-administrativas”, o paradigma de que esse nivelamento por baixo é sempre “o que se tem para hoje”,  os quais acabam por dominar a mente e digital do brasileiro, demonstra essa dimensão explicitamente. É muito perversa a propagação ideológica da mentira mor, pela qual se sugere não haver qualquer direção sem ser a da mesmice, ou da falsa novidade na qual a mesmice cara de pau, eventualmente, se traveste. O padrão comportamental da descrença, patrocinado a partir da manipulação pelo ultrapassado e esgotado pode ser quebrado com uma simples atitude, caracterizada pela ousadia e coragem de pensar algo fora do que é comum. Contudo, há um facho de luz propiciado pela própria escuridão. Segundo a Psicologia, quem está, momentaneamente, preso à tendência de auto-sabotagem, ainda que pela dor, acaba se tornando forte, na medida em que é obrigado a se superar para sobreviver após problemas em sequência. Portanto, ideia ousada, corajosa e fora do comum - para romper a auto-sabotagem - seria usufruir da força conquistada através das lutas pela sobrevivência, para romper hábitos, propondo “por quês” até as raízes, determinando novos resultados. Aí sim o medo seria vencido, não somente pela esperança - como “marketeiramente” se vendeu - , mas, também por sua parceira, chamada reforma íntima. É necessário acreditar sempre!!!

          Segundo pequeno trecho de texto de Frédéric Rouvillois - professor de Direito Público e escritor francês -, apresentando na prova da Fuvest, a utopia teria efeitos catastróficos, pois estaria relacionada ao um mundo perfeito e ideal, não propondo qualquer limite, inclusive ético, para realização de tal. Entretanto, professor Frédéric parece desconsiderar a utopia como um ponto de partida, mesmo e muitas vezes que um tanto distante do que será o “ponto de chegada”. Ou seja, que ela constitua um meio ou referência para algo melhor - sendo fundamental que a sociedade se perceba merecedora dessa melhora. Desconsiderar a utopia equivale, no mínimo de forma indireta, à ascenção de tudo que já está viciado, determinando sempre resultados, senão idênticos, similares ao que leva à toda gama de sofrimentos. Nesse contexto, a auto-sabotagem justifica, plenamente, aquele pensamento pelo qual o próprio indivíduo é seu pior inimigo. Diferentemente do que pensou o referido professor e escritor francês, associando o conceito de utopia ao de perfeição - caracterizando perigo e abusos -, o jornalista e escritor Eduardo Galeano refletiu sobre a utopia de modo mais simples, direto e condizente com seu real propósito: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Estaríamos já fadigados e com pés feridos e inchados?                              

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