Tempo de digestão

Tempo de digestão

Nos idos de 2005, o seriado Lost deu início a uma das maiores febres da TV mundial. A produção transformou a maneira de se assistir a programas televisivos, em escala global. Foi a primeira grande série a motivar a criação de fóruns virtuais de debate, com discussões de teorias e defesas de teses sobre os personagens e o enredo. Também foi um marco no que diz respeito à mobilização de fãs por todo o mundo: assíduos e ansiosos, eles aguardavam e baixavam os episódios, logo após a exibição nos Estados Unidos, país em que o programa era originalmente exibido.

 Para quem não acompanhou esse momento, vale um retrospecto. Antes da popularização dos downloads de grandes arquivos, quem era fã de qualquer seriado sofria por ter de esperar semanas ou meses para assistir ao episódio da série favorita, transmitida por canais a cabo, que, muitas vezes, respeitavam um cronograma que não era condizente com a ansiedade dos telespectadores.

 O modelo operacional para a propagação de Lost, à época, era invejável e digno de nota: grupos se organizavam para traduzir as falas, legendar, formatar o arquivo e, algumas horas depois da transmissão no canal norte-americano, os capítulos já estavam disponíveis para serem baixados por qualquer um. 

 É fato que, há 13 anos, a velocidade da internet e os recursos que todos nós tínhamos eram mais escassos. Para quem dependia dos provedores gratuitos, ou dos pagos, mas com baixa potência, a espera pelo download do episódio da semana poderia levar mais de cinco horas. Hoje, uma demora de 20 minutos já é suficiente para telefonar à operadora e perguntar o motivo da lentidão. 

 Em 2006, assistir a mais de um capítulo de qualquer seriado por dia só seria possível com DVDs. Mesmo assim, nenhuma série que estivesse no ar já teria todo o conteúdo disponibilizado de uma só vez. Diferente do modelo que encontramos hoje, com os recursos on demand, que nos fazem reféns do sofá por horas, quando nos empolgamos e emendamos série atrás de série. 

 Não é raro encontrar alguém que passe o dia livre ligado na TV. É até normal assistir a uma temporada inteira num final de semana, ou menos. Oito ou dez episódios podem passar num piscar de olhos. Antes, esperávamos, no mínimo, uma semana pela continuação da história e um novo episódio. Agora, podemos ver tudo em 24 horas.

 Quando tínhamos esses dias de intervalo entre um download e outro, ou entre uma transmissão e outra, podíamos digerir tudo aquilo a que assistíamos. Era comum conversar com os amigos, trocar ideias sobre cada capítulo, criar teorias.

 Hoje, com tanto conteúdo e vendo tanta coisa ao mesmo tempo, fica difícil prestar a atenção nos detalhes, envolver-se com os personagens e, claro, lembrar de tudo o que foi assistido. Perdemos o tempo da reflexão sobre o que vivenciamos, porque “maratonamos”. É quase uma disputa, para ver quem termina antes e, claro, para não receber um spoiler.

 Em Lost, um avião cai em uma ilha e os passageiros precisam aprender a conviver e a sobreviver, sem recursos e sem saber onde realmente estão. Ali, todos os personagens estão perdidos. Aqui, perdidos estamos nós, que mal conseguimos absorver cada história que acompanhamos por termos perdido o tal tempo da digestão. 

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