A Dança, a Vida e o Caos

A Dança, a Vida e o Caos

No final do mês passado, mais precisamente no dia 29 de abril, foi comemorado o Dia Internacional da Dança. Descobri a data nas minhas redes sociais ao ver uma série de publicações de amigos e conhecidos celebrando o tal dia. Sorri por dentro ao ver as publicações. Senti que vibrava com eles. Eu era, como eles, uma entusiasta da dança.

Me lembrei de um texto que escrevi em 2021 e que falava um pouco sobre a minha história e relação pessoal com a dança. Fiquei com vontade de retomá-lo e tentar desenvolver melhor as ideias contidas nele. Assim, poderia me juntar às “vozes” de meus colegas dançarinos, embora um tanto quanto atrasada, e contar o quanto a dança foi transformadora em minha vida...

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Eu fui uma criança tímida, vergonhosa. Falava pouco. Pequenas situações desafiadoras, como ter que falar com estranhos, me deixavam nervosa. Curiosamente uma das situações em que eu esquecia a vergonha era quando me punha a dançar. E como era gostoso! Eu não sei o porquê, mas a vergonha sumia... Acho que sentia que tinha uma facilidade em dançar. E que mesmo sem ensaio ou aula, era uma atividade em que me saía bem. A dança era lugar de potência desde pequena e era muito bom estar nesse lugar.

Mais adiante, na adolescência, descobri a dança de salão. Foi meu pai quem me apresentou a esse universo. Anteriormente só tinha visto em filmes. Meus pais haviam se separado há pouco tempo. Desconfio que meu pai procurou a dança de salão para tentar conhecer e socializar com outras pessoas. Eu e minha irmã o acompanhávamos em algumas aulas e eventos. Foi um mundo novo que se abriu para mim. Acabei conhecendo vários ritmos: bolero, salsa, soltinho... Cada ritmo pedia um dançarino-personagem diferente. Achava um barato! Foi também nessa época em que frequentei os primeiros forrós. O forró universitário estava em alta. Então era possível dançar esse ritmo sem estar ligado a nenhuma escola de dança. Dessas vivências na adolescência, ficou a vontade de um dia voltar a fazer dança de salão para aprender a dançar direito.

Voltei à dança de salão meses antes do meu casamento. Para o azar do noivo, eu queria uma coreografia para a tal primeira dança. Foi um período prazeroso esse de preparação para uma apresentação tão especial. No entanto, bem cansativo e estressante também. Dançar a coreografia para uma multidão de convidados queridos foi algo bastante empolgante! Um momento guardado com bastante carinho em minha memória.

Por ironia do destino, retornei às pistas de dança somente anos depois, após a minha separação. Foi um período bastante conturbado em minha vida, marcado por muitas mudanças e transformações pessoais. Assim como meu pai, eu sentia que precisava conhecer e interagir com novas pessoas. Foi uma antiga colega que me chamou para ir com ela em um forró.

Fascinada – foi como me senti quando coloquei os pés de volta no salão. Lembro como se fosse ontem quando um cavalheiro me tirou para dançar. Após alguns rodopios, me senti maravilhada, relembrando a delícia que era fazer isso! Parecia a receita da felicidade instantânea e então fiquei me perguntando: “Como é que eu pude deixar a dança, por tanto tempo, de fora da minha vida?”. Eu não sabia responder... Todavia senti que não devia mais deixá-la de fora e assim comecei a ir aos forrós. E depois, a frequentar alguns bailes promovidos por escolas de dança de salão.

Me sentia “em casa” nesses lugares e estranhamente essa “casa” parecia ser eu mesma. Era eu mesma me habitando novamente. Ocupando meus espaços. Ouvindo minhas vontades. Priorizando meus desejos. Me lançando a espaços novos. Me abrindo a novas interações. Eu por eu mesma. Ao mesmo tempo em que adentrar a esse mundo da dança parecia algo muito novo e diferente, também parecia algo antigo e bem conhecido. A dança me dava um senso de continuidade no turbilhão de mudanças que me aconteciam. Ela denunciava um pouco de quem eu era e me dava alguma direção de quem eu queria ser dali para frente.

Acabei fazendo algumas amizades nos forrós e bailes e, nesses eventos, eu me aventurava em outros ritmos. As amizades se estenderam para além dos forrós e bailes e me ajudaram a passar pelos momentos de turbulência emocional, na época tão frequentes. O contato com outros ritmos me fez ter vontade de me matricular em uma escola de dança de salão. Me matricular em algumas aulas foi uma das decisões mais acertadas que tomei no caótico ano de 2019. As aulas de dança, durante a semana, funcionavam como um suporte na minha rotina: um momento de (re)encontro comigo mesma, de resgate de potência e de interação e apoio social. Era tudo isso o que a dança me proporcionava.

Cheguei a comentar nas minhas sessões de psicoterapia sobre como foi importante o meu retorno à dança. Eu ficava intrigada sobre por qual motivo me sentia tão “liberta” dançando. Era engraçado pensar como na dança as coisas davam certo tão espontaneamente. Nos outros contextos, eu sempre tinha roteiro para tudo. Na dança, não e ainda assim dava certo. Na dança de salão, no papel de dama, não fazia sentido ter um roteiro sobre os próximos passos, porque ali eu tinha que me deixar ser conduzida pelo cavalheiro. Não precisava me preocupar com o planejamento dos passos. Não cabia a mim isso. Eu só precisava estar atenta aos comandos do cavalheiro para compreender a intenção dos movimentos planejados pelo por ele.

Era um alívio para mim, no momento da dança, não estar no controle e planejamento de tudo, como eu costumava estar nos demais contextos em minha vida. Para isso, era necessário confiar mais no parceiro que estivesse junto comigo na dança. Talvez, em outros âmbitos da minha vida, eu devesse me deixar levar mais sem me preocupar tanto com o que estava fora do meu controle. Talvez, em outros espaços, eu também precisasse confiar mais nos outros e aprender a abrir mão ou dividir responsabilidades que não eram exclusivamente minhas.

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Acredito que ir ao encontro de atividades que nos façam sentido é um ato de autocuidado. Porque significa priorizar a si mesmo, a despeito das inúmeras demandas que a vida e os outros nos colocam e nos cobram (ou que imaginamos que nos cobrem e que devamos responder). Eu precisei chegar ao momento mais caótico da minha vida para perceber o quanto a dança me fazia bem e assim passar a integrá-la à minha rotina.

Penso também que é possível tirar algum aprendizado sobre nós mesmos por meio de qualquer atividade, desde que estejamos atentos à nossa relação com ela. Essa é a minha história e relação com a dança. Aqui tentei descrever os aprendizados pessoais que tive com ela. Espero que o meu relato possa inspirar os leitores a se (re)conectarem com as atividades que lhe fizerem sentido e a ouvirem o que elas podem dizer sobre si mesmos.

Encerro este texto compartilhando a experiência de uma amiga querida, que veio se reconectar com uma atividade que era importante a ela – a música – justamente no caótico ano de 2020, ano em que começou a pandemia. No recital presencial dos alunos, ocorrido quase dois anos depois de aulas exclusivamente online, ela interpretou Carmen Miranda, cantando a música “E o mundo não se acabou” – um samba escrito na década de 30, que fazia referência ao fim da pandemia da Gripe Espanhola no Brasil. Ao final de seu número, ela recitou as seguintes palavras aos colegas da turma “pandêmica”:

“O mundo não acabou

Mas a pandemia não era fake news

E muita gente que era o mundo de alguém se foi

E no meio de tanta tristeza e caos a gente se encontrou

 Que eu não espere o próximo fim do mundo

Pra me entregar de corpo e alma

a tudo o que me fizer sentido

nesse meu mundo inacabado”

 

Dedico estes escritos a todos os meus companheiros de baile, em especial, meu amigo Miro. Manifesto aqui também todo o meu carinho ao professor de dança Alexandre Cardoso e às três escolas de dança de salão em Ribeirão Preto que me acolheram em diferentes momentos – mais ou menos caóticos – da vida: Escola de Dança Raquel Ellen, WE Dance e Studio Érika Alves.

Por fim, compartilho uma playlist, construída em parceria com meu amigo Miro, com músicas que falam sobre dançar, em momentos alegres e tristes, de festejo/congregação e de solitude/solidão. Acredito que aqueles que se reconhecem como entusiastas ou amantes da dança poderão apreciar. Parafraseando um verso da cantora Pitty e uma frase do escritor Zack Magiezi:

O mundo pode acabar hoje e ainda assim eu estarei dançando

Porque sou uma bailarina que aprendeu a dançar conforme o caos.

 

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