¿Dolores, para qué los quiero?

¿Dolores, para qué los quiero?

E se você não conseguir mudar isso? E se você tiver que conviver com isso para sempre?

Foi o que eu perguntei a um jovem no último atendimento que fiz com ele. O jovem era acompanhado por mim por ordem judicial. Tinha praticado um delito anos atrás, o qual lhe rendeu uma medida socioeducativa. No entanto, quando comecei a acompanhá-lo, o seu drama não tinha nada a ver com infrações ou perseguições policiais.

O “isso” a que me referi na pergunta era o transtorno de saúde mental que ele portava. O “isso” no ponto de vista do jovem era um cheiro desagradável que ele acreditava ser portador e que o levava a viver recluso, afastado das pessoas.

Não seria ele o causador de tamanha repugnância nas pessoas com aquele cheiro, não é mesmo? – Era o que o jovem me dizia, ainda que eu lhe dissesse que não sentia cheiro nenhum.

Sendo assim, era melhor viver afastado – Eis a conclusão dele.

O jovem estava preso, recluso, mesmo estando solto – Eis a minha conclusão.

Há alguns adoecimentos psíquicos que são mais limitantes do que as mais concretas prisões.

E se você não conseguir mudar isso? E se você tiver que conviver com isso para sempre?

O jovem se espantou com minha pergunta. Eu também.

Pensando bem, é realmente uma pergunta horripilante. Cogitar conviver para sempre com algo desconfortável, angustiante, doloroso...

Para o jovem, ser portador de um cheiro que causava nojo em si mesmo e a outras pessoas era uma dor. Para mim, doía ver um jovem tão jovem se privar da vida e do contato com as pessoas por causa desse mau cheiro que sentia ter.

Por isso, a pergunta escapuliu de mim no último atendimento. Minha preocupação em forma de pergunta dizia respeito não ao cumprimento da medida socioeducativa, mas ao restante de toda a sua vida. Ele continuaria a viver sua vida recluso?

Talvez ele nunca acreditasse que não exalava mau cheiro. Talvez ele nunca deixasse de sentir aquele mau cheiro. Talvez mesmo resolvendo o mau cheiro, ele continuasse sentindo olhares repugnantes, reais ou irreais, sobre si mesmo. Talvez o problema não fosse erradicar o mau cheiro (ou o transtorno de saúde mental que o fazia sentir o tal odor), mas sim como lidar/conviver melhor com esse problema.

E se você não conseguir mudar isso? E se você tiver que conviver com isso para sempre?

Há alguns anos minha mãe foi diagnosticada com Mal de Parkinson. É uma doença irreversível, segundo as medicinas ocidentais mais tradicionais. Eu, que convivo de perto com minha mãe, acompanho, em alguma medida, a sua jornada em relação a essa doença: a busca por outras terapias e tratamentos, outros modos de compreensão acerca de sua origem e ademais, as vitórias, as esperanças, os temores e os desapontamentos de cada dia.

Um dos maiores incômodos que a convivência com o Parkinson acarretou em minha mãe são as dores. Dor – esse fenômeno às vezes silencioso para aqueles que o assistem e às vezes muito ruidosos para aqueles que por elas são acometidos. Se eu pudesse, eu erradicava o Parkinson ou as dores da vida da minha mãe. Contudo, por ora, as dores continuam por aí fazendo visitas com certa frequência.

Eu, que a observo diariamente, gosto de pensar que ela dá um tapa na cara do Parkinson todos os dias. Simplesmente vivendo sua vida, a despeito das dores que ele lhe traz... Enfrentando as dificuldades, mas vivendo. Que audaciosa ela! Irreverentemente altera todos os dias o diagnóstico irreversível. Não exatamente o diagnóstico da doença, mas o de sua convivência com ela. O seu prognóstico de vida.

¿Pies, para qué los quiero?

No mês passado eu fui assistir a uma peça de teatro sobre a Frida Kahlo – o espetáculo "Frida Kahlo – Viva la Vida", texto de Humberto Robles, com a atriz Christiane Tricerri, apresentado no Teatro do SESI Ribeirão Preto.  Eu havia conhecido a Frida há uns dois anos através de um documentário no Netflix. Para quem não sabe, trata-se de uma incrível pintora mexicana que viveu entre os anos de 1907 e 1954.

Frida teve uma vida marcada por muitas dores desde a juventude porque sofreu um grave acidente com apenas 18 anos de idade. Devido a sequelas desse acidente, ela não conseguiu gerar filhos, tendo três abortos. No ano anterior ao de sua morte, ela precisou ter os pés amputados, quando proferiu a célebre frase: ¿Pies, para qué los quiero si tengo alas para volar?

As dores que a acompanharam durante a vida, tanto as dores físicas quanto as dores psíquicas – como a de não ter podido dar à luz a um filho – marcaram profundamente sua obra. Chegou ela a dizer: “Não pinto sonhos nem pesadelos. Pinto minha própria realidade.”.

Saí da peça de teatro impactada com a sua história... Quantas dores e quanta vida havia nela, na Frida. Difícil separar as dores de sua obra. Ou as dores da própria artista.

¿Dolores, para qué los quiero?

Dolores – nome de origem espanhola que literalmente significa dores.

Talvez todos nós sejamos um pouco Dolores. Cada um carregando um pouco de dor. Cada um com seu bocado de dor. Dores físicas, dores psíquicas. Dores passageiras, dores crônicas. Dores que falam baixinho, dores que gritam aos ouvidos. Dores localizadas, dores espalhadas. Dores de amor. Dores “sociais”. Dores de cotovelo. Dores mais ou menos doloridas. Dores de tudo quanto é tipo.

Talvez não seja preciso brigar com nossas dores.

Talvez seja possível conviver mais pacificamente com elas.

Talvez nem sempre seja possível erradicá-la de nós. Até mesmo por estarem tão intricadas ao que fomos e ao que somos.

Talvez a pior doença seja ficar aprisionado a uma ideia restrita de cura.

Talvez a pior prisão seja ficar à espera da cura para voltar a viver, pois isso significa erradicar-se da própria vida.

Talvez a verdadeira cura não diga respeito necessariamente a curar nossas dores, mas a aceitá-las e integrá-las às nossas vidas, por mais que isso nos doa.

Ser vida, apesar das dores. Ser Frida, apesar dos Kahlos.

Encerro esse texto compartilhando com os leitores uma playlist dolorosa. Não para fazer doer mais ao ouvinte que já esteja doendo ou para fazê-lo relembrar de antigas dores (a menos que ele assim o queira!). A tentativa é de contribuir no sentido de normalizar a dor e nos fazer lembrar que é permitido doer... Quem sabe assim não aceitamos melhor as dores em nossas vidas e possamos conversar com elas?

Com muitas ou poucas dores, desejo muita Frida a todos!

 

*As informações sobre a vida de Frida Kahlo foram retiradas do site: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/frida-kahlo.htm

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