Minha Reta Ziguezagueada

Minha Reta Ziguezagueada

Ruptura. Descontinuidade. Perda de direção. Falta de rumo. Sem lugar. Sem destino. Foi assim que me senti anos atrás quando escrevi o primeiro texto que me atrevi a chamar de crônica. A tal crônica foi a elaboração de um período doloroso em que me via cercada de muitas dúvidas e completamente perdida, como nunca havia me sentido até então. A metáfora usada no texto para descrever esse sentimento de ruptura/descontinuidade foi a de uma reta quebrada.

 

Eu não tinha a intenção de publicá-lo aqui por não ser um texto novo/inédito. No entanto, recentemente, me vi vivendo sentimentos muitos semelhantes aos vividos naquele período, como se a reta da minha vida tivesse quebrado nova e inesperadamente... Isso me fez pensar que nem todos os acontecimentos em nossas vidas são exatamente “inéditos” para nós, mas, nem por isso, são eles necessariamente menos impactantes. Assim, me pareceu fazer sentido compartilhar esse meu antigo texto neste momento aqui e agora. Com vocês então...

 

Minha Reta Ziguezagueada

 

Alguns pensadores da Psicologia dizem que as pessoas costumam organizar suas narrativas pessoais em histórias. Criamos histórias sobre nossas vidas em um esforço de dar sentido às nossas experiências. Criamos histórias sobre nós mesmos. Com o passar da vida, vamos alterando essas histórias para agregar novos eventos ou novas versões de nós mesmos, protagonistas de nossas histórias.

 

Eu costumava olhar para minha vida como uma história linear. Caminho cuidadosamente traçado, planejado e depois levado a cabo. Meu caminho era uma reta. Não perfeita! Porque mesmo na minha vida, vez ou outra, aparecia uma ou outra pedra que dificultava um pouco a execução do trajeto. Porém, o caminho que ligava esses dois pontos, o de partida e o de chegada tendia a uma reta e eu me orgulhava disso.

 

No meio do caminho havia uma pedra.

Eu tinha orgulho de superar as pedras do caminho. Sabia que não era um mérito apenas pessoal. Muitas pessoas e condições me ajudavam a escalar a tal pedra, a retirá-la do caminho ou então a esculpi-la. Eu sabia disso. Entretanto, também tinha o meu mérito: eu não desistia do meu trajeto frente a uma pedra.

Em um determinado momento, a reta da minha vida quebrou. A experiência do não planejado chegou, colocando tudo em xeque: todo o caminho percorrido e todo o caminho traçado ainda a se percorrer. Quando uma certeza muito certa na sua vida se quebra, é possível que você se questione sobre todas as outras suas certezas. Foi isso o que me aconteceu.

 

No meio do caminho havia dúvidas. Muitas dúvidas.

Eu já não sabia se o caminho que eu tinha percorrido até ali era, de fato, o que eu queria ter percorrido. Já não sabia se o caminho traçado para ser percorrido dali em diante era o que eu queria continuar percorrendo. Mas se não fosse aquele caminho, qual seria?

 

Fora do caminho havia uma Marina perdida.

Para essa pedra, eu não estava preparada. Com essa pedra, eu não estava acostumada a lidar... Me lembro de conversar com um amigo, cujo caminho costumava ser bem mais tumultuado que o meu. O caminho dele era bem diferente de uma reta. Ele começava 500 coisas e não concluía nenhuma. Eu brincava com ele dizendo que ele andava igual caranguejo! Isso porque ele andava muito, de um lado para o outro, se cansava demais, mas não chegava a lugar nenhum. Ou, melhor dizendo, não chegava em nenhum lugar em que se sentia bem ou satisfeito, com aquela sensação de dever cumprido, apesar das pedras do caminho.

 

Eu, por outro lado, pensava 500 vezes antes de começar qualquer coisa. Quando começava, era para chegar até o fim. Não era uma opção não concluir algo começado. Era um dever! Ainda que não gostasse, deveria ser levado a cabo até o fim. Caminho cuidadosamente planejado, esforços totalmente concentrados sobre a tarefa do momento. A cada ponto de chegada, uma nova reta traçada para um próximo ponto de chegada.

 

Se ele ziguezagueava como caranguejo, eu era precisa como uma águia. Contudo, agora, eu estava empacada. Pior! Nem caminho eu tinha... Sentia como se tivesse sido expulsa da minha história. Não conseguia criar outra para mim. A protagonista que era heroína virou anti-heroína. Uma heroína sem história para ser protagonista. Uma protagonista sem enredo. Que só perambulava na vida. Fazia coisas sem saber bem porquê. Fazer ou não fazer não fazia muita diferença. Afinal, as coisas só faziam sentido dentro de um caminho. Fora dele, tanto fazia.

 

Fora do caminho, a protagonista sem enredo encontrou uma música:

“Quem não tem o seu destino chega a noite pensa que tudo acabou
Se levanta muito cedo, n
unca sabe bem por quê que levantou
Nada tem urgência para cumprir
Pode virar do outro lado e dormir
Pode ficar nessa até o entardecer
Todos os amigos vão entender
Levantar sem ter destino
Pra quê?

 

Quero minha sina
Quero minha sorte
Quero meu destino
Quero ter um norte
Quero ouvir uma vidente
Que me conte tudo, só esconda a morte
Quero uma certeza mínima 
Que se confirme, não seja trote
Por não ter o meu destino 
Vivo em desatino 
como Dom Quixote

(Sem Destino – Luiz Tatit)

 

Era isso: eu estava sem destino... Não aquele destino pré-determinado. Eu não tinha um rumo para o qual seguir, o que me fazia sentir que eu não tinha lugar no mundo. Uma anti-heroína sem lugar e sem destino.

 

Fora do caminho e sem destino, a anti-heroína encontrou uma poesia:

“Não é sobre saber pra onde vai
Não é saber qual é o sentido
Nem se realmente está. onde está

Ser presente,
Sentir a parte que te cativa
O que te faz ir
O que ficar te fez

Partir e trilhar ficou mais fácil
Estender-se para o que não se entende
Mais natural

Busco encontrar
A mim mesma que está aqui
Mesmo estando por aí

Perder-se naquilo que era óbvio
Seguindo o mesmo sentido

Estou aqui pra fugir
Ou pra me encontrar?
Quando a jornada acaba?

Reflexo
Fora por dentro
Tentativa de ser
Eu”

(Eu – Nathália Bonacin)

 

Era isso! Eu não precisava descobrir um próximo destino a ser seguido. Bastava prestar atenção durante o meu próprio caminho. Eu não estava fora do caminho. Eu só tinha dúvidas se aquele caminho traçado era o que eu queria continuar seguindo. 

Talvez na vida a gente deva se preocupar mais com o caminho do que com o destino. Porque o destino é sempre incerto. A gente não sabe se vai chegar lá ou não, por mais que queira e se esforce para isso. O caminho, por outro lado, é aproveitado no próprio trajeto, não precisa de destino para valer a pena. Quando a gente gosta do caminho, até as pedras ficam mais fáceis de serem suplantadas. Quando a gente não gosta do caminho, mesmo com poucas pedras, ele é difícil de ser percorrido.

 

Era difícil admitir, mas aquele caminho que eu estava trilhando na vida já não me agradava mais. Seguir nele me trazia o conforto de continuar desenhando uma reta na minha vida. Uma história linear com uma protagonista heroína que sempre soube o que queria. Contudo, o desconforto daquele caminho era grande... O que me agradava e eu estava deixando de fora do meu trajeto atrás de um destino cujo caminho já não me agradava mais? Essa era a resposta para eu encontrar meu novo caminho ou destino.

Eu abandonei o caminho antigo. Deixei de concluir o trajeto que eu tinha traçado e planejado. Abandonei minha reta linear. Abandonei minha ideia de que uma heroína sempre sabe o que quer e para onde vai. Fui seguir um caminho novo, em que o destino pouco importava porque eu já me realizava nele, no próprio caminho.

 

Incluí esse capítulo na minha história. Hoje é o meu capítulo preferido desse livro inacabado que é a minha vida. Tenho orgulho de contar que eu, a protagonista da minha vida, saí de minha reta linear. Tive coragem para fazer isso. Abandonei um caminho que não me agradava mais e fui trilhar um caminho diferente, que me pareceu fazer mais sentido. Não foi a pedra que me fez abandonar o caminho antigo. Foi a grama verde do caminho novo e as flores que vislumbrava poder plantar nele.

Hoje eu ainda penso 500 vezes antes de fazer alguma coisa, no entanto, às vezes as coisas pensadas passam na minha frente e irrompem sem que eu tenha planejado direito. Eu ainda procuro uma linearidade em meu caminho, contudo me permito ziguezaguear mais nessa minha reta imaginária. Não vejo mais esse ziguezaguear como desperdício de tempo ou de esforços. Vejo os ziguezagues como experimentações para outros caminhos possíveis e me sinto feliz por me permitir viver essas experimentações. Me libertei da ideia de que a linearidade é sempre o melhor caminho para a vida ou para mim mesma.

No meio do caminho, havia vários caminhos possíveis.

*****

 

A Marina de anos atrás, que se libertou da exigência da linearidade e se reencontrou no caminho da vida, lembraria a Marina de hoje, que se sente novamente perdida, que:

Nem todo caminho fora da reta é ruim e estar dentro da reta não é necessariamente bom. Portanto, nem sempre a reta é o melhor caminho que une dois pontos ( o de partida e o de chegada).

Ziguezaguear por um mesmo ponto por algum tempo talvez seja algo inevitável de passar em algum momento da vida.

Ziguezaguear pela reta pode ser um movimento de exploração importante e necessário, pois propicia ajustes no caminho.

Ainda quando não for possível seguir pela reta em direção ao ponto em que se deseja chegar, talvez seja possível transformar a reta numa curva, conciliando o planejado com o inesperado.

 

Vou finalizando hoje com uma postagem que cruzou recentemente meu Facebook e me fez rir pela confluência de ideias:

“A reta é uma curva que não sonha” (Manoel de Barros) – dizia a publicação.

“Mas eu sonho com retas, Sr. Manoel!” – comentava o autor da publicação.

Talvez o desafio da felicidade seja conseguir sonhar com (ou apesar de) a curva do inesperado – é o que eu responderia hoje ao autor da postagem.

 

 

 

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