Ser Mulher: entre o Doce e a Porrada
Há mais ou menos um ano, próximo a esta data – Dia Internacional da Mulher – eu me sentia muito tocada com uma música por mim recém-descoberta, chamada Gigantesca, de Mariana Volker. Para mim, a música se conectava com o “ser mulher” e a potência disso. Resolvi tirar a música no piano, gravar um vídeo e publicá-lo junto com um texto (disponível aqui), que falava sobre o significado que a música tinha para mim. Publiquei ainda no mês de março daquele ano, desejando que outras mulheres pudessem ouvir a música e senti-la como eu a sentia (um reencontro com a potência).
Compartilhei a publicação com uma amiga minha que, depois de um tempo, veio me dar um feedback. Ela me disse que estava esperando vir uma “porrada”, mas achou a música doce. Achei engraçado ela dizer isso... Pensei em outras publicações que já havia feito sobre feminismo e que tinham um tom mais de “ataque”– uma resposta a alguma situação de violência ou opressão por mim sofrida. Eu interpretei essa fala da minha amiga assim: “às vezes a gente cansa de lembrar que é mulher, mas dessa vez foi doce”.
Me recordo de outra situação que ocorreu há uns dois anos com um amigo. Nós trocávamos sugestões de filmes do Netflix. Ele me indicou um filme de suspense, em que a protagonista era uma espécie de investigadora-vingadora de crimes. Ela aceitava o trabalho apenas se achasse que valia à pena o caso, econômica e moralmente falando. Ou seja, era também uma justiceira. Tratava-se de um filme com muito mistério envolvido, muita tensão no decorrer da história, como em todo filme de suspense. A cena mais chocante, para mim, foi a de um estupro, do qual a protagonista foi vítima. E de cujo agressor ela pode se vingar mais tarde.
Meu amigo veio me perguntar depois o que eu havia achado do filme. Eu disse que eu não tinha gostado, dentre outras razões, porque eu havia achado o filme muito “pesado”. Fiquei com a impressão de que ele não esperava aquele meu parecer sobre o filme. Esse amigo era alguém com quem eu discutia assuntos relativos a feminismo. Suspeito que ele achava a protagonista uma mulher “foda” e tenha achado o máximo ela ter feito justiça com as próprias mãos. Eu fiquei pensativa nisso... em como as nossas impressões sobre o filme eram diferentes... porque eu acho que isso tinha relação, em alguma medida, com esse lugar de “ser mulher”.
Ele podia admirar a personagem pela sua força, coragem e inteligência e talvez até sentir um êxtase pela atitude dela de se vingar de um crime que sofreu. Contudo, para mim, me identificar com a personagem significava, antes de qualquer coisa, me identificar com o lugar de vítima. Para ele, a história era fictícia e, mesmo se fosse real, ele não estaria no papel de vítima. Para mim, a história era assombrosamente real e eu era uma potencial vítima... Potencial vítima de uma violência tão cruel, como o estupro, pelo simples fato de ser mulher.
Às vezes a gente se cansa de lembrar que é mulher. Porque nos faz encarar uma “dura” realidade, não só por essa potencial condição de vítima de violência sexual, mas também de inúmeras outras violências e opressões, explícitas ou implícitas, que nós mulheres sofremos nessa sociedade patriarcal e machista em que vivemos.
Às vezes a gente se cansa de lembrar que é mulher, porque ser mulher dói. Porque ocupar esse lugar vem junto com vários medos e preocupações. Muitas vezes a gente tem medo de ser. Muitas vezes a gente sente revolta... Não por ser, mas por não poder ser quem quisermos, sem sofrer sérios riscos, ameaças e julgamentos.
Às vezes a gente se cansa de lembrar que é mulher, porque isso implica em enfrentar combates diários para tentar transformar ou, ao menos, não se submeter ao estado atual das coisas. Um estado que envolve assédios, julgamentos, objetificação sexual, silenciamentos, desrespeitos, violências, etc.
Eu gostaria de dizer pra esse amigo que eu compreendo esse sentimento de excitação frente à possibilidade de vingança, sobretudo considerando a impunidade que vemos ainda nos dias de hoje, inclusive de situações que chegam ao sistema de justiça. No entanto, eu queria dizer a ele que, antes de querer vingança ou até mesmo justiça, eu preferiria mil vezes não ter que reagir ou me vingar de nada. Ou, melhor dizendo, preferiria mil vezes não ter nada do que me vingar ou reagir por nunca ter sido violentada, desrespeitada ou oprimida – talvez nunca ter nem me preocupado com isso – por ocupar esse lugar de “ser mulher”.
Receio que este ano, neste Dia Internacional da Mulher, eu fui menos doce... Mas penso que falar desta data sem lembrar que ela se refere a uma luta que persiste até os dias de hoje é também esvaziá-la de sentido. Além disso, acredito que, para resgatar essa potência que existe dentro de nós mulheres, a despeito de tantas barreiras e violências que enfrentamos diariamente por sermos mulheres, é inevitável que reconheçamos essas barreiras e violências, e esse reconhecimento passa necessariamente pelo lugar de dor e revolta.
Este ano, neste Dia Internacional da Mulher, deixo uma playlist de músicas, escritas e cantadas/interpretadas por mulheres, que abarcam tanto o lado mais “doce” como o cheio de “porrada”, para mim relacionadas a esse lugar de “ser mulher”. Dentre as músicas da playlist, chamo atenção para algumas que gosto de ouvir em momentos específicos em que me encontro (e que talvez faça sentido para outras mulheres também). Quando preciso gritar por alguma violência ou opressão que sofri ou vi outra mulher sofrer, procuro ouvir “Não Precisa ser Amélia” de Bia Ferreira e Mulamba do grupo M.U.L.A.M.B.A.. Quando estou me sentindo mais em paz e livre para ser quem sou, gosto de ouvir “Faminta” de Flaira Ferro, “Velha e Louca” de Mallu Magalhães e “Pagu” de Rita Lee. Nos momentos em que busco o autocuidado e o resgate/reencontro com minha potência, gosto de ouvir “Triste, Louca ou Má” de Francisco, el Hombre e “Gigantesca” de Mariana Volker. As demais músicas da playlist são para ocasiões diversificadas e algumas são verdadeiros “recados” para os homens.
Espero que as mulheres que venham a ouvir essas músicas possam se sentir, em alguma medida, acolhidas, compreendidas e/ou encorajadas/empoderadas, assim como eu me sinto ao ouvi-las. Por fim, espero também que os homens, sobretudo os que “vestem a camisa” do feminismo, ouçam as mulheres e as músicas dessa playlist, porque elas dizem muito desse lugar – mesclado à dor, revolta e potência – que ainda nós, mulheres, ocupamos e sobre o qual eles, homens, também são responsáveis.
Como compôs Tulipa Ruiz e cantou Elza Soares na canção “Banho”:
“Embaixo, sou doce
Em cima, salgada”.