A ninfomaníaca no divã

A ninfomaníaca no divã

Ele não está entre os filmes indicados ao Oscar, mas vale a pena assistir para testar os limites e a flexibilidade dos seus padrões morais e sexuais. Desde a escolha do título, “Ninfomaníaca” envereda por um caminho que choca os padrões convencionais pela abordagem de um tema que, mesmo depois de décadas de uma suposta liberação, ainda continua sendo um tabu.  O safo diretor dinamarquês, Lars Von Trier, vem recebendo chicotadas da crítica especializada, acusado de violar, deliberadamente, as regras da moralidade para ganhar dinheiro com a  “prostituição cinematográfica”. Para que a coleção de casos da personagem principal coubesse no padrão cinematográfico, a versão original de cinco horas foi dividida em duas. A primeira, com 1h50 de duração, está em exibição nos cinemas de Ribeirão Preto, diga-se de passagem, com afluência de público muito boa. A segunda parte, já em cartaz em países da Europa, deve chegar ao Brasil em março. Apesar da fama de rebelde, o diretor aceitou dividir o filme em duas exibições para se enquadrar no status quo da indústria cinematográfica. Uma concessão expressiva para um cineasta que se apresenta como contestador.

Embora as luzes pisquem para as cenas de sexo explícito, mesmo que alguns closes tenham sido cortados, o mais importante não é o que aparece na tela, mas a forma como a sexualidade se projeta. Prazer ou indiferença, vergonha ou desinibição total, erotismo ou vulgaridade, preconceito ou a liberação total? Sensações díspares copulam na dramática narrativa da personagem ninfomaníaca, absorvida pelo sexo mecânico, sem um fio de prazer ou de sentimento.  Joe, interpretada pela atriz Charlotte Gainsbourg, é uma mulher bonita, mas longe do clássico padrão de beleza que contempla a média do gosto masculino. Assim, ficará decepcionado o espectador que for assistir ao filme, esperando ver aquela performance exuberante  de uma mulher tarada que não pode ficar sem sexo. Isso seria muito vulgar para Lars Von Trier que concebeu o filme para mostrar uma face do sexo que o público não está acostumado ver na tela. Vejam como os valores se invertem. Depois de décadas de filmes pornôs, o cinema fez um longo voto de castidade e restringiu as cenas de sexo que aos poucos começam a reaparecer nos filmes.  Nas cenas mais picantes de Ninfomaníaca, o elenco internacional foi substituído por dublês.

As aventuras de Joe são as mais devassas possíveis, mas o seu confidente, o senhor idoso que a acolhe e funciona como o psicanalista das suas peripécias, não se mostra tão surpreso assim, exceto por um perturbador caso de parentesco e o humor fúnebre na traição que destrói uma família. Joe conta que perdeu a virgindade de uma forma brutal, sem a presença do eros. A partir daí, uma amiga a introduz numa maratona sem fim de relacionamentos sexuais. Mesmo com a avalanche de parceiros, ela nunca consegue encontrar a indescritível química que liga o sexo ao amor. A propósito, nas relações atuais, longe das telas, o sexo e o amor continuam casados, vivendo juntos sob o mesmo teto, ou já se separaram definitivamente? Nesse ponto, o diretor alcança o clímax com a obra. Quebrado o gelo inicial, à medida que o filme avança, o choque com as imagens explícitas vai diminuindo na cabeça do espectador que assimila o erotismo pornográfico das cenas. Para o confidente da ninfomaníaca, na freudiana sessão de psicanálise em que o filme se desenvolve, as mais inimagináveis bizarrices fazem parte da natureza humana. Quem duvida, precisa ler algumas passagens bíblicas que recriminam os bacanais cometidos por nossos ancestrais.

O sofrimento da solitária “ninfo” evidencia que as partes menos nobres da existência, aquelas que ficam escondidas para não serem vistas, fazem parte da natureza hedonística do ser humano, insaciável na busca pelo prazer. Sempre há uma face sombria que ronda o comportamento, por vezes, excitado por sentimentos incontroláveis que se manifestam no sadismo puro ou na mera promiscuidade. Os sentimentos mais repugnantes podem estar contidos na vertigem dos desejos mais espontâneos.

A ninfomaníaca representa a sexualidade levada até o degrau do êxtase, do gozo calculado, sem se importar com os sentimentos alheios.  Lars Von Trier não perde a chance de instigar o espectador, ao banalizar as relações sexuais e retirar do sexo a sua importância vital, o seu componente explosivo e transformador. Na visão do diretor, consumado o ato, não há nada mais sem graça do que um desejo bem saciado, mesmo que essa seja a mais incontrolável obsessão de uma ninfomaníaca.

Compartilhar: