Os golpes na democracia

Os golpes na democracia

O ser humano não resiste ao feitiço dos números redondos. Assim, por influência da mídia, o país inteiro imergiu no debate sobre os 50 anos do golpe militar de 1964. Quase nada se escreveu sobre os 48 ou 49, mas mesmo assim a reflexão vale a pena. Meio século depois da famigerada tomada de poder pela força, a data ainda está fresquinha nos anais da história recente, até porque as consequências da quartelada podem ser sentidas até agora. No entanto, a vida gira rápido e as efemérides, hoje, dizem muito pouco para as novas gerações, muito conectadas com o presente e ligadas na última mensagem que chegou no WhatsApp. Quem tem 20, 30, 40 e até a idade do golpe de 64 sempre respirou ares mais democráticos e desconhece o sufoco da perda de liberdade do período da ditadura.

Só quem tem mais de 50 ou 60 deve carregar alguma lembrança da noite longa, os 30 anos da duração da ditadura militar. Os políticos eram cassados e não havia escolha direta dos governantes. Foi um período sombrio, época em que a tortura correu solta, que pessoas foram assassinadas e que de alguns desaparecidos até hoje não se têm notícias onde os cadáveres foram jogados. Especula-se que o corpo do deputado cassado, Rubens Paiva, tenha sido esquartejado e jogado no mar.  Existem verdades que submergem para sempre na história.

Bem, esses relatos são importantes para manter viva a memória do povo e rechaçar o sentimento golpista e as novas tentativas de passar por cima das instituições. As marchas reacionárias e com poucas adesões revelam que as viúvas do autoritarismo continuam camufladas por aí. Tal como o cupim que absorve toda a madeira, a democracia brasileira está infestada de gente que se considera dona absoluta da verdade, que tem planos perenes de poder para uma democracia de fachada com viés autoritário. Esse modelo mais maduro está na Venezuela. Em março de 1964, quando o presidente civil eleito foi deposto, o golpe contou com o aval das famílias Sarney e Magalhães que até hoje comandam a política no Maranhão e na Bahia, respectivamente. 

Jornais como a Folha, o Estadão e o Globo, que no começo apoiaram o golpe, fizeram uma autocrítica e admitiram o erro. Nesse contexto de aprendizado, a reflexão do golpe de 31 de março ganha sentido por conta da comparação entre o Brasil de 50 anos atrás e o de agora. A democracia avançou? As instituições estão mais fortalecidas? Indicadores importantes como a saúde e a educação melhoraram? O Brasil tem hoje uma consciência política melhor do que havia no começo dos anos 60?

Os avanços políticos são lentos e por isso são difíceis de perceber, mas quem focar bem as lentes na estratificação da sociedade brasileira verá que as velhas oligarquias e as classes privilegiadas continuam dominando o aparato do Estado e decidindo as políticas públicas. As eleições diretas para governantes estão consolidadas e são aperfeiçoadas ano a ano pela Justiça Eleitoral, mas ainda tem muito governante ficha-suja ocupando cargos na administração pública. O Executivo ainda consegue reverter uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao nomear ministros afinados com o poder. Por isso, só votar para presidente ou prefeito não basta. A veia democrática precisa correr pelas estruturas arcaicas para evitar que os sucessores das famílias que comandaram o golpe continuem mandando na política brasileira. Na época das torturas, os órgãos de repressão diziam que os presos políticos se suicidavam, caso do jornalista Wladimir Herzog. Hoje, em muitas ocorrências policiais, os moradores das periferias das grandes cidades “morrem em confrontos, vítimas de balas perdidas”.   

 A ruptura política que houve em 64 esfacelou o sistema educacional brasileiro e fragilizou os partidos políticos. Esses foram os dois maiores estragos que o golpe militar deixou. A política brasileira virou um sertão semiárido de lideranças políticas sérias. Os mais de 30 partidos que o país possui estão cada vez mais distanciados do eleitor brasileiro, que demonstrou a sua imensa insatisfação nos protestos de junho do ano passado. O país de quase 200 milhões de habitantes se encaminha para mais uma eleição presidencial com escassas opções de voto. Apenas três políticos brasileiros possuem chances reais de vitória, pouco para uma nação que ainda tem muito a avançar. Uma semana antes desse debate em torno deste marco da política brasileira explodiu a notícia de que o atual governo, com o aval da presidente, torrou mais de um bilhão de dólares em uma operação desastrada na compra de uma refinaria nos Estados Unidos. Isso comprova que para sobreviver, a democracia precisa ser forte, com raízes profundas, incorporada no dia a dia do povo. Caso contrário, nunca estará pronta para revidar os golpes mais duros dos detentores do poder.

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