A abstinência do zap zap

A abstinência do zap zap

Você olha para o celular e ele continua ali, mudo, calado, sem emitir nenhum sinal de vida. Aquele irritante assobio de passarinho, de repente, desapareceu da sua vida. Você dá uma olhada no aparelho, pressente que algo errado está acontecendo, fora da normalidade, mas não entende o que se passa. O dia não parece o mesmo. Logo suspeita de uma temporária perda de sinal, mas a curiosidade e a dependência falam mais alto. Vira o aparelho de lado, fuça nos aplicativos, digita em várias teclas e nada. Muito estranho! Não chegou aquela infalível sequência virtual de bom dia! Não baixou nenhum vídeo infame de um bêbado caindo na sarjeta. Onde está aquele texto longo, interminável, de um escândalo ainda não revelado pela mídia, envolvendo milhões e as altas autoridades da república? Sumiram as montagens para cornetear times derrotados. Cadê aquela mensagem com a tradução de uma música de grande sucesso que foi adaptada para se tornar uma mensagem construtiva? Algumas horas se passam e não chega nenhum clip de fundo religioso capaz de acalmar até mesmo os espíritos mais atormentados.

Surge a incômoda sensação de solidão, parece que o mundo desconectou-se, sem mensagens e sem notícias. Pinta um vazio, uma ociosidade incomum. Incrível, mas até o escasso tempo está sobrando. São 24 horas intermináveis. O aparelho ostenta um silêncio provocador, que alimenta a contraditória compulsão. De repente, um indivíduo incauto, sem nenhum pudor para transmitir notícias chocantes, confirma o temor e a suspeita. O WhatsApp, o mais popular aplicativo do país, utilizado por mais de 100 milhões de brasileiros, ficaria fora do ar por intermináveis 72 horas. Uma bomba no cotidiano das pessoas, um fato mais importante que a queda da bolsa ou o andamento do processo de impeachment. A compulsória abstinência nacional foi sumariamente decretada por uma poderosa excelência federal da turística comarca de Lagarto, em Sergipe, cidade que dista 75 km da capital. Como o Brasil possui um vasto território, a wikipedia informa aos neófitos da geografia que na cidade do juiz Marcel Montalvão é possível saborear arroz de galinha, sopa de mocotó, mugunzá, arroz doce, vatapá, maniçoba, caruru, beiju de tapioca, pé-de-moleque, malcasado e outras iguarias saborosas da culinária nordestina.

Abrigado sob o guarda-chuva do Facebook para consolidar a dominação virtual dos internautas, o aplicativo de múltiplas plataformas instantâneas de texto, vídeo e voz virou uma paixão nacional que transcende o fetiche de qualquer ferramenta. Essencial para o trabalho, rápido e certeiro, fonte de lazer e de entretenimento foi batizado de zap zap. Por ser de graça, conquistou a preferência popular. Difícil imaginar que um dia o mundo funcionou sem ele. Até os mais antigos se renderam a sua comodidade. Em fevereiro deste ano, o criador do Facebook e dono do WhatsApp, Mark Zuckerberg, anunciou que o aplicativo alcançou a expressiva marca de um bilhão de usuários no mundo.

Parece que o judiciário brasileiro ainda não conseguiu compreender a importância que o aplicativo tem para as pessoas comuns que dependem da ferramenta para trabalhar e resolver problemas importantes. A empresa já explicou por diversas vezes que não mantém arquivadas as conversas telefônicas que podem subsidiar investigações policiais. Talvez tenha adotado essa estratégia de criptografar essas gravações até mesmo para se livrar dessa encrenca. Em abril, o aplicativo concluiu o processo o sistema de criptografia “end-to-end”, que limita o acesso às conversas apenas aos interlocutores.

Mesmo que pudesse disponibilizar esse conteúdo e se recusasse a entregar as informações às autoridades, isso não justifica a ação arbitrária do magistrado que para punir a empresa prejudicou 100 milhões de pessoas. Existem outras punições possíveis. As multas diárias são as que mais pesam contra empresas. Num abuso de poder, o juiz Marcel Montalvão e o desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Cezário Neto, extrapolaram suas funções e chegaram até a sugerir outros aplicativos que os usuários poderiam usar. Isso está fora das atribuições do Judiciário. Embora a obtenção de informações criminais seja relevante para a sociedade, isso não pode ser feito de forma prepotente. O Conselho Nacional de Justiça vai investigar o comportamento do juiz que aparece todo pimpão nas fotos na mídia. Está curtindo o seu momento celebridade. Além do uso exagerado das novas ferramentas, o Brasil ainda precisa se curar de vícios antigos. Entre os mais corriqueiros estão o abuso de autoridade e a vaidade desmedida das pessoas que querem aparecer a qualquer preço. 

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