As abstrações do poeta

As abstrações do poeta

O ano de 2017 está terminando, faltam poucos dias para uma virada que na realidade está muito ligada ao imaginário de cada um. Isso não significa que tudo continuará como está, mas a dinâmica da vida demonstra que os segundos, os minutos e as horas se sucedem sem levar em conta a divisão ou a cronologia das convenções. A própria percepção do tempo está em franca transformação. A vida sempre passa, seja em dias, em meses ou em anos. Isso demonstra que não adianta muito esperar pelo ano que vem para começar novos projetos, colocar mudanças em prática ou alterar a trajetória. O tempo não costuma conceder prorrogações e, às vezes, descobre-se, de uma maneira muito dura, que pode ser tarde demais. Os filósofos refletem bastante sobre como lidar bem com essa preciosa dádiva. Embora não pareça, o passado e o futuro estão sempre muito distantes, um porque já passou e o outro porque não dá a mínima certeza se de fato virá.

Num hipotético exercício de abstração, se fosse possível olhar o mundo de fora sem fazer parte dele, poderia se concluir que no cotidiano de cada um existem barreiras que parecem intransponíveis. Um exemplo bem próximo disso é o combalido Brasil, no momento, tomado pela corrupção, pela violência e por um rol de mazelas que parece não ter fim. Apesar do tempo ser de renovação, não há otimismo que resista a tanta notícia ruim. Somente por essas terras se descobre que o ex-governador de um estado mundialmente conhecido pela sua beleza montou uma quadrilha para saquear seus eleitores durante décadas. Nesse mesmo país, o assessor direto e comprovadamente próximo do presidente da República foi flagrado com uma mala de meio milhão de reais. O deputado assessor foi indiciado e o processo contra o presidente ficará na gaveta, esperando que um dia ele perca o foro privilgiado. Por essas outras, o mais alto mandatário não pensa em se aposentar depois que deixar a presidência. Em 2019, poderá ser ministro de qualquer coisa para não perder a imunidade.

Se tiver estômago para ir acompanhando as notícias, o cidadão brasileiro ainda descobrirá que o sistema permitiu que um solitário auditor da Receita Federal desviasse R$ 160 milhões durante mais de 10 anos, sem que nenhum superior hierárquico soubesse. A fraude só foi descoberta pela Polícia Federal por causa do relato de um “bendito” delator. Aí veio a gota d´agua. Até o Tiririca resolveu renunciar e delatar a podridão da política no Brasil. Esta época se presta aos simbolismos. Sem Olímpiada e Copa do Mundo para competir, 2017 entra para a história como o ano dos delatores. Diante de tanta entrega, as delações seriam um prêmio ou um desabono vergonhoso? Depende. Se de um lado, o delator torna público algo nocivo do qual participou e que sociedade provavelmente nunca saberia, por outro lado, através da confissão o país enxerga as próprias vísceras e ao final de um longo e doloroso processo talvez consiga extirpar alguns males.

Neste final de ciclo e da necessidade de desanuviar o pensamento no ano das delações, surge a lembrança do imortal Mario Quintana, um especialista na arte de se abstrair das agruras da vida. O poeta tinha uma leveza muito própria, uma maneira suave e engraçada de ver e levar a vida. Não casou e não teve filhos. Solitário viveu grande parte da sua vida em hotéis. Certa feita, Quintana foi despejado porque o jornal para o qual trabalhava deixou de pagar o aluguel. O poeta recebeu o socorro do ex-jogador Falcão que cedeu um quarto de um hotel de sua propriedade. Sobre as dimensões do pequeno quarto em que passou a morar, Quintana poetizou: “Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas”. Depois da sua morte, o prédio e o quarto foram tombados e transformados em uma Casa de Cultura que leva seu nome. Lá pelos anos 40, o poeta ganhava a vida como tradutor de livros do inglês e do francês e até fez uma tradução muito particular do “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéry, obra inédita que será lançada em breve. No livro, com sua sabedoria empírica da vida, Quintana abriu uma janela para desviar o foco ao traduzir uma máxima do escritor francês. No mundo em que as abstrações se fazem necessárias, “o essencial sempre será invisível aos olhos”. 

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