Anatomia política

Anatomia política

O domingo, 17 de abril, foi um dia sem precedente na história do Brasil. Tradicionalmente, o sagrado dia do descanso fica reservado à atividade física, ao passeio no clube, à reunião familiar ou às transmissões esportivas. Esse foi o primeiro domingo em que um assunto sério como a política nacional predominou na desqualificada programação dominical dos grandes veículos de comunicação. Foram 10 horas de transmissão ininterruptas, das TVs abertas aos portais da internet, passando pelas rádios até as emissoras a cabo. A sessão que aprovou o pedido de admissibilidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff, por 367 a favor e 137 contra, iniciou às 14h e terminou a meia-noite. Registrou apenas duas ausências e sete abstenções, ou seja, os parlamentares foram forçados a se posicionar.

Quem teve paciência para acompanhar todo esse processo, sem se deixar levar por ódios, rancores e ideologias fechadas, teve rara oportunidade para visualizar as engrenagens da política nacional, saber quem é quem. O cidadão que se deu a esse trabalho chegou a triste constatação de que o Congresso Nacional tem a cara do país e que, para melhorar, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Além dos argumentos prós e contras, os discursos na Câmara dos Deputados refletiram as contradições, as ideologias, as doutrinas, os interesses econômicos, as artimanhas políticas, o corporativismo e até o folclore que fazem parte do caldeirão político do país.

As contradições da política começam justamente pelo deputado que sacramentou o placar. O 342º voto favorável ao processo de impeachment veio do deputado federal, Bruno Araújo, do PSDB de Pernambuco, que teve o nome citado na lista de pagamentos da Odebrecht. O deputado disse que o dinheiro da empreiteira foi declarado oficialmente na campanha e a Justiça investiga se a doação é originária do caixa dois.

Contudo, antes de chegar a esse voto, o cidadão interessado em acompanhar o processo teve que ouvir uma extensa ladainha de intenções dos parlamentares que não queriam perder os segundos de glória diante de uma audiência massiva. Ocorreu algo tão chato como os agradecimentos dos artistas que vencem o Oscar ou os depoimentos do arquivo confidencial do Faustão. Em vez de apresentar de forma resumida as razões do voto, muitos deputados aproveitaram esse “momento de glória” para citar os filhos, as esposas, os pais numa flagrante mistura entre o interesse público dos cidadãos que assistiam a transmissão e os assuntos familiares que deveriam ser privados. Alguns deputados desviaram tanto o foco das intervenções que até se esqueciam de votar. Uma das manifestações mais abomináveis veio do deputado Jair Bolsaro (PSC) que rendeu homenagens ao coronel Brilhante Ustra, o mais conhecido torturador da ditadura militar de 1964.

O mico do ano ficou para a deputada Raquel Muniz (PSD) que no seu discurso enalteceu o “melhor prefeito do país”, o seu marido, Ruy Adriano Borges Muniz, que, comanda a cidade de Montes Claros (MG). Menos de 24 horas depois, o digníssimo que era “exemplo de gestão” foi preso em Brasília pela Polícia Federal acusado de ter inviabilizado hospitais públicos na cidade. A votação na Câmara dos Deputados teve ainda cenas de traição explícita, patrocinada por ex-ministros que votaram contra o governo do qual fizeram parte até poucos dias. O caso mais gritante foi do insólito Mauro Lopes, que há duas semanas era ministro Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e mesmo assim votou pelo impeachment.

Ocorreram ainda manifestações raivosas e até ataques descabidos sobre temas que não estavam em pauta. Nem a democracia é um sistema perfeito, mas, apesar dessas imperfeições, o histórico impeachment do dia 17 de abril teve um grande perdedor e um grande vencedor. O maior derrotado foi o desastroso governo da presidente Dilma Rousseff que mesmo distribuindo cargos e verbas não conseguiu o quórum mínimo de 171 votos, sinal de descrédito, de desarticulação e de incapacidade política. Os créditos da vitória vão para milhões de brasileiros que, por diversas vezes, saíram às ruas exigindo mudanças. Com essa mobilização, obrigaram muitos deputados a mudarem o voto. A pressão foi tanta que o comparecimento à sessão foi de quase 100%, com duas ausências justificadas. Embora tenha sido um passo importante, o impeachment de Dilma Rousseff não é um fim em si mesmo e não resolverá os problemas do país. Trará mais resultados se for encarado como um processo. Agora, o próximo passo será retirar Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados e Renan Calheiros do comando do Senado, garantir a continuidade das investigações da Lava-Jato e manter a pressão popular sobre o próximo governo. 

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