
As armas da controvérsia
A violência foi um dos temas predominantes na última eleição e garantiu o respaldo das urnas para muitos políticos que vincularam as candidaturas ao tema da segurança pública, principalmente nas redes sociais. O presidente Jair Bolsonaro foi um deles, tendo inclusive marcado sua campanha com um gesto característico que se tornou icônico. Se o corredor jamaicano Usain Bolt se notabilizou pela representação de uma flecha associada à sua rapidez nas pistas de corrida, o novo presidente vinculou a sua imagem ao disparo de uma arma, gesto indelével que reproduz um tiro. Não foi nenhuma surpresa que a assinatura do decreto que libera a posse doméstica de uma arma para cidadãos brasileiros urbanos e rurais tenha sido uma das suas primeiras medidas concretas que não foi desaconselhada, desautorizada ou desmentida pelos assessores. Assim como o aborto ou a maioridade penal, o direito de possuir uma arma em casa entra para a lista de temas polêmicos em que a sociedade brasileira está envolvida com argumentos a favor e contra para ambos os lados.
Os que são contra a liberação da posse de arma se baseiam em princípios religiosos e pacifistas para a construção de um mundo menos violento, onde, em tese, não há lugar para as armas. Mesmo que essa seja uma visão utópica, ela produz resultados concretos, pois, à medida que se reduz a quantidade de armas em poder da população, a tendência é de queda no número de mortes por uso de armas de fogo. Evidentemente que outros fatores interferem nessa estatística. Junto com a liberação da posse, em breve, virão as notícias sobre as tragédias familiares que fatalmente ocorrerão. Em um acesso de fúria, maridos com propensão à violência usarão as armas contra as esposas, aumentando os casos de feminicídio. O inverso também ocorrerá. As antigas e intermináveis brigas de vizinho poderão ter um fim trágico. A bebedeira do final de semana também poderá ter um desfecho violento. Mais dia, menos dia uma criança ou adolescente encontrará a arma que está dentro de casa e ficará exposta a um grande risco. Pessoas inexperientes também serão responsáveis por atos que terão sérias consequências. Todos esses crimes e fatalidades seriam evitados se as pessoas não tivessem uma arma de fogo em casa ou se o acesso fosse restrito a quem tem razões objetivas para possuir uma arma.
Embora com legislação e situação diferentes, os Estados Unidos são um triste exemplo das tragédias que ocorrem quando a população tem acesso às armas. Mesmo que a legislação atual não tenha permitido a posse, o precedente está aberto para que as restrições caiam gradativamente. Ninguém duvida que essa é a intenção do atual governo e de muitos parlamentares eleitos para o Congresso Nacional. Por outro lado, ninguém desconhece que, com a explosão dos índices de violência, o cidadão ficou desprotegido, refém dentro da própria casa. Com enorme facilidade, armas de todos os calibres entram no país por todas as fronteiras sem fiscalização. O armamento sai inclusive dos órgãos de segurança para entrar nesse mercado clandestino. Sem segurança alguma, a população rural ficou exposta à ação de quadrilhas que roubam e matam impunemente. No plebiscito de 2005, cerca de 65% da população já havia votado a favor do comércio das armas de fogo.
Apesar de o movimento pacifista possuir defensores proeminentes em todo o mundo, de Mahatma Gandhi a John Lennon, a indústria armamentista nunca foi seriamente abalada. A guerra sempre foi um negócio rentável, no mundo há muitos estados militarizados, como Israel, ou países mais pacíficos, como o Brasil que produz aviões militares. O grande vilão dessa questão é o poder público. Se o Estado brasileiro não tivesse falhado, provavelmente a segurança pública não ganharia o status de tema prioritário. Se os órgãos de segurança tivessem cumprido a sua missão com êxito, as armas em poder da população civil seriam casos raríssimos. Em 2017, o Brasil registrou 64 mil mortes violentas, 175 por dia. Faltaram investimentos, recursos humanos e uma política de segurança. O resultado foi essa enorme sensação de insegurança escancarada na eleição que resultou na liberação da posse de arma. A entrada em vigor dessa medida significa que o Estado reconhece sua incapacidade de proteger o cidadão e dar garantias de segurança. A questão se encaminha para um confronto que será cotidiano, cada um por si. De agora em diante, os que quiserem estão liberados para comprar uma arma e enfrentar os criminosos no próximo assalto.