
A arte de perder
No calendário das comemorações, a Páscoa talvez seja o período mais carregado de significados, pois encerra numa mesma data os antagonismos da vida e da morte que nos acompanham o tempo todo. Este ano, a data que lembra o calvário, a morte e a ressurreição chegou ao mesmo tempo em que o mundo ficou estarrecido diante da revelação de que um jovem piloto alemão, dominado por pensamentos insanos, deliberadamente, jogou um avião em direção a uma cadeia de montanhas, matando 150 pessoas. A loucura que habita sorrateiramente os labirintos da mente humana, quando se revela, pode ser estarrecedora.
As tragédias acompanham a história da humanidade, mas, agora, assumiram novas faces e são cada vez mais frequentes. Sucedem-se de maneira intensa, assumindo novos graus de sofisticação, maquiavelismo e insanidade. Embora seja mais confortável pensar que somos senhores absolutos do nosso destino, na verdade somos todos indefesos reféns do acaso. O trágico episódio do avião configura um exemplo ilustrativo, de grandes proporções, mas o dia a dia também se apresenta cheio de infortúnios de menor monta, nem por isso, menos dolorosos. A descoberta de uma doença, a perda de alguém próximo ou um rompimento afetivo ensejam as duras lições que nos obrigam a lidar com os ganhos e as inevitáveis perdas.Por estar carregada desse simbolismo — alguns novos chocolates possuem um sabor bem amargo — a Páscoa remete às alegrias do convívio e as dores das ausências. Se os ganhos são recebidos com extrema naturalidade a ponto de nem serem muito valorizados, as perdas deixam marcas profundas, provocam dores intermináveis e levam muito tempo para cicatrizar. Nesta hora, certamente, as famílias das pessoas que estavam no avião devem estar tentando encontrar alguma explicação racional para tamanha tragédia, tentando compreender a mente do piloto, com uma mistura de ódio e de perdão, de raiva e de compaixão, de rancor e de piedade. Sobre essa difícil arte de perder, no seu momento mais marcante, o filme “Para Sempre Alice”, que conta a vida de uma professora que descobriu a doença de Alzheimer, traz à tona uma linha de pensamento que serve para atenuar a dor pujante. O texto da poetisa americana, Elizabeth Bishop, que a personagem interpretada pela atriz Julianne Moore leu em um encontro com especialistas em Alzheimer, pode ser chamado de um bálsamo, um unguento no vocabulário dos mais antigos. O pai da escritora morreu antes dela nascer e sua mãe foi internada com transtornos mentais quando Elizabeth Bishop tinha cinco anos. Talvez por isso a poetisa tenha desenvolvido uma visão menos sofrida dos momentos traumáticos. Na maioria das vezes, faltam palavras para dizer ou para escrever a alguém que foi submetido à dor de uma grande privação. “A arte de perder não é nenhum mistério. Tantas coisas contém em si a possibilidade concreta do acidente de perdê-las, que perdê-las não é um desastre. Precisamos aprender a arte de perder.”
Elizabeth Bishop, uma das mais famosas poetisas da língua inglesa, viveu no século passado. Morreu em 1979. Se estivesse viva, poderia incrementar sua visão sobre a arte de perder com a significação da resiliência. Hoje, esse vocábulo funciona como um contraponto ao esgotamento do senso de justiça e as desumanidades que campeiam à solta. Para sobreviver nessa selva torna-se imprescindível desenvolver uma espécie de couraça, aquela pele grossa, capaz de proteger das perdas eventuais e mesmo das definitivas. A filosofia da resiliência se inspira na propriedade que alguns materiais têm para acumular energia, submetidos à pressão. Depois de absorver o impacto, eles voltam ao estado inicial no menor tempo possível, sem grandes alterações no estado original.
Quem já experimentou as perdas sabe que as dores deixam marcas, sejam elas decorrentes de um acidente aéreo ou da descoberta de uma doença grave. Nessas horas, sobram poucas energias para fazer com que esses momentos sejam passageiros e não se tornem duradouros ou eternos. Diante de tantos riscos e de tanta exposição, a resiliência tornou-se uma espécie de anticorpo necessário e indispensável à sobrevivência. As pessoas consideradas felizes não possuem um DNA diferenciado, mas são aquelas que conseguiram desenvolver a capacidade de viver lidando melhor com as perdas. Nesse processo de autofortalecimento, vale até ajudar o outro a ser feliz e ainda desejar uma feliz páscoa!