
Caldeirão fervendo
No rastro da onda de violência que se agiganta no país, algumas cenas de vandalismo e de reação desmedida vão se tornando corriqueiras, entrando sorrateiramente no perigoso terreno da banalização. É a cena que vai virando fato comum, anestesiando a opinião pública. Atos de violência não são questionados e, em alguns casos, espantosamente, até recebem apoio tácito. Assim ocorreu no ano de 2019 que está terminando. Quase todos os dias, notícias chocantes revelam esses flagrantes corriqueiros da intolerância raivosa que se assanha freneticamente ao arrepio da lei. Empiricamente, sem examinar atentamente as estatísticas, não se pode afirmar que as cenas de violência da vida cotidiana estejam aumentando. Na verdade, nunca foram tão registradas pelas câmeras de celulares que hoje são onipresentes. Antes desse cotidiano filmado, essas realidades passavam batidas. Nossas mazelas estavam escondidas na calada da noite.
Os piores exemplos de racismo e da violência, por paradoxal que pareça, vêm do esporte. Na cultura que se instalou, quem perdeu o jogo ou uma classificação qualquer tem o direito de quebrar tudo para protestar e demonstrar insatisfação. Este último ato foi cometido pela torcida do Cruzeiro no rebaixamento do time para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Cadeiras, banheiros e televisores do Mineirão pagaram a conta da derrota, causando um prejuízo de R$ 300 mil. Quando se pensa em civilidade, esportividade e referências de comportamento, o prejuízo será ainda maior. Registre-se que a torcida do Cruzeiro não está sozinha neste campo da barbárie. Quase todas as torcidas dos grandes clubes brasileiros já fizeram igual ou pior.
Outro episódio que entrou para a lista de tragédias sem grandes consequências foi a morte dos nove jovens da favela de Paraisópolis. Difundiu-se no Brasil uma cultura equivocada que sustenta em vídeos e comentários informais que quem defende o cumprimento da lei está a favor dos criminosos. Todos os crimes estão previstos em lei assim como as penalidades. A Constituição Federal e as leis ordinárias asseguram ao Estado a prerrogativa do uso da força para reprimir quem não quiser se submeter ao cumprimento das regras. A autoridade que detém o poder de polícia só não pode fazer o uso desproporcional, a esmo ou aleatoriamente. Assim, não se pode aceitar que uma menina de 7 anos leve um tiro nas costas dentro de uma Kombi. Da mesma forma, quem frequenta um baile funk ou uma festa rave não deve receber uma cacetada sem motivo. Se o criminoso está disposto a correr qualquer risco para fugir, a autoridade policial não pode pensar da mesma forma, pois a segurança coletiva faz parte da sua responsabilidade. Assim, a pretexto de prender dois fugitivos não se pode colocar em risco a vida de milhares de pessoas, sejam elas ricas, pobres ou de classe média. A reação intempestiva e desproporcional resultou em uma tragédia com a morte de nove inocentes.
O Brasil vive um período conturbado em que a histeria coletiva precisa dar lugar aos ânimos serenados. Basta prestar um pouco de atenção para encontrar nas redes sociais e nas notícias do dia a dia um monte de gente que anda sempre com o fósforo na mão. Quando a desarmonia impera, surge um terreno fértil para a proliferação de inverdades e das generalizações perigosas que deturpam a compreensão da realidade. Nem a polícia, nem a imprensa e nem o Judiciário, para citar apenas três, são instituições homogêneas que possuem um modo de pensar e agir de forma uníssona. Por isso, todas as generalizações e posições maniqueístas que insuflam o bem contra o mal são meramente destrutivas. Há que se tomar cuidado com o discurso e as posturas corporativas.
O tempo inteiro, as contradições e os conflitos fazem parte da vida. Essa é uma realidade imutável, o que faz a diferença é a forma como a sociedade resolve suas diferenças. Não se pode colocar as ideias e as posições políticas numa panela de pressão. Com a exceção dos períodos ditatoriais, todos precisam se submeter ao império da lei. A regra vale para o juiz, para o promotor, o policial, o jornalista e o organizador do baile funk. Só o criminoso não aceita o cumprimento da lei e fica sujeito à repressão da força do estado. O país não se pode deixar levar pela onda de histeria coletiva, do justiçamento com as próprias mãos, da vingança, da solução violenta e do espírito armado para o confronto. Em diversos países do mundo, a história já mostrou que esse caminho leva as rupturas institucionais em que no final não há vencedores e vencidos, só uma nação perdedora. Chile, Colômbia, Equador são exemplos bem próximos e atuais que demonstram claramente as consequências que a violência e a exclusão social podem causar. O fogo está aceso e o caldeirão fervendo.