
A censura do beijo
O Brasil da atualidade virou palco de confrontos e debates entre a direita e esquerda, entre os progressistas e os conservadores, e entre os liberais no modo de viver e os que defendem a tradição dos costumes. A controvérsia faz parte da democracia. Apesar do tom exagerado que esse debate ganha em alguns momentos, melhor ter excesso de barulho do que o silêncio que impera nas ditaduras, mas já faz tempo que a temperatura não baixa. Entre os casos mais recentes está a decisão da presidente da Câmara de Porto Alegre, Mônica Leal, que mandou recolher uma exposição com charges críticas ao presidente Jair Bolsonaro que acontecia no prédio. A chapa esquentou mesmo no Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella tentou banir, sem sucesso, um gibi da Bienal que trazia dois garotos se beijando. O prefeito tentou retirar dos estandes a cena de um beijo gay numa história em quadrinho com a “intenção de proteger crianças e adolescentes de um conteúdo impróprio”. Para justificar a sua posição, Crivella evocou o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê a tutela do Estado e dos pais em alguns casos. Para livreiros, artistas, escritores, leitores e entidades ligadas ao mundo jurídico, o prefeito praticou um ato de censura.
Quem observa o comportamento das crianças e dos adolescentes conclui que, na grande maioria, a juventude integra a corrente progressista do modo de viver e de pensar. Tomando o ano 2000 como a virada do século e um marco entre épocas, as novas gerações cresceram convivendo de forma natural com a diversidade. Por isso, aceitam tranquilamente, sem conflitos, as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Os jovens também assimilam bem o novo formato das famílias e não fazem discriminações raciais e de gênero. Nas escolas e nas universidades, essa nova realidade da aceitação das diferenças se impõe naturalmente, mesmo que, esporadicamente, retrocessos sejam registrados. A maior resistência aos novos comportamentos está justamente na cabeça dos adultos que cresceram em um mundo mais rígido com padrões bem definidos do que é “certo ou errado”. Entre milhares de manifestações que reagiram à tentativa do prefeito de retirar os livros da feira, uma das editoras declarou que apoia “a diversidade, a construção de um mundo livre no qual cada pessoa tenha o direito de amar quem quiser”.
A Constituição Brasileira, mesmo que tenha sido escrita no século passado, em 1988, já traz na sua concepção jurídica essa nova visão que os ventos da modernidade e da evolução fazem soprar. No caput do artigo 220 está escrito de forma clara e cristalina que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”. Quem se sentir injuriado, ofendido e prejudicado tem o direito de recorrer à Justiça para pedir a reparação dos danos. A censura prévia está proibida e todos os autores de conteúdos respondem por suas publicações. Curiosamente, uma parcela expressiva dos brasileiros transfere para o presidente da República a liberdade que a própria constituição tenta assegurar. Pesquisa recente do DataFolha mostrou que 45% dos brasileiros acham que cabe ao presidente aprovar pessoalmente filmes e espetáculos feito com apoio de leis de incentivo.
Polêmica e contrassensos à parte, a decisão do prefeito do Rio de Janeiro não surtiu os efeitos que ele esperava. Pelo contrário. Os gibis se esgotaram rapidamente, em 40 minutos. Numa cena prosaica de triste memória, os guardas da Prefeitura correram à toa atrás das histórias em quadrinho. O youtuber Felipe Neto comprou e distribuiu gratuitamente 14 mil livros da temática LGBT. Naquele dia, a polêmica foi o assunto mais comentado no twitter. A Bienal bateu recorde de público e de vendas. Editoras e artistas se uniram em torno da defesa da livre manifestação. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a liminar de um desembargador e reafirmou que a liberdade é um bem supremo da democracia de que o país não pode abrir mão. Um escritor ironizou o prefeito, sugerindo que ele também poderia censurar o seu livro para dar uma alavancada nas vendas. Em 40 anos, não havia ocorrido um caso assim no evento. A mídia nunca falou tanto da Bienal do Rio de Janeiro. Outros casos de censura da história recente foram relembrados. Os principais juristas do Brasil se manifestaram em defesa da liberdade. A subversão da ordem sempre foi o tema preferido das histórias em quadrinhos. Até Batman e Robin já foram acusados de serem homossexuais.
A democracia brasileira passou por mais um teste. Para o bem da nação, as instituições precisam ser mais fortes que qualquer governante de plantão. Elas devem prevalecer como freios para os dirigentes que cometem excessos. E, de mais a mais prefeito, livros e gibis possuem circulação restrita e são os pais que liberam a verba para as compras das crianças. Assim, se, por ventura, os pais acharem que o conteúdo é impróprio, o filho não compra. Já tivemos muitos avanços nessa área. O STF reconheceu em 2011 a união entre pessoas do mesmo sexo. O beijo está incluído neste pacote garantido pela Constituição, em qualquer ambiente, em qualquer mídia e em qualquer publicação. Na década de 60, Caetano Veloso já cantava “é proibido, proibir”. Será que aos 77 anos, o baiano, que também já teve sua sexualidade contestada, terá que entoar esse velho refrão?